Arquivos diários: 17 de abril de 2007


TRÊS DIAS DE SERIEDADE

É paradoxal, mas o período de seriedade terminou. Uma fez findo o Carnaval, começa o ano brasileiro. E a seriedade se vai. Cai-se no cotidiano e este é marcado pela ausência de limites. Vale tudo.

Todos os veículos de comunicação, no período de Carnaval, cobrem os acontecimentos com grande acuidade. Só especialistas são chamados a se pronunciar sobre os desfiles de escolas de samba, blocos, enredos, trios elétricos e demonstrações de maracatu. Não vale penetra.

Agora, porém, quando o ano se inicia, todos os fora-de-estrada comparecem. Falam sobre o que sabem e muito mais sobre o que desconhecem. Somos o país dos catedráticos, figura sempre no imaginário nacional.

Vai ser assim, daqui por diante. Até que chegue novo Carnaval e com ele o retorno da seriedade. Só resta, pois, a partir de agora, rir perante o grande circo que se instala.

Há os que entram no picadeiro com a sisudez própria das índoles autoritárias. Outros mantém  traços dos dias que se passaram. Estão sempre sorrindo e adiando decisões. Entre uns e outros, são preferíveis os que mantêm o sorriso.Nada mais chato que a pessoa que se leva a sério.

Já que chegamos aos tempos normais, é importante analisar assuntos que ficaram submersos durante o tríduo governado por Momo, um rei de bom senso.

A reforma política é um deles. Encontra-se em curso no Senado Federal uma emenda constitucional que restabelece a cláusula de barreira, aquela que impede os partidos de frágil densidade eleitoral manter privilégios.

Deve ser aprovada no Senado, mas na Câmara Federal as coisas são diferentes. Nesta Casa, os parlamentares sabem ser bom contar com múltiplas legendas para eventuais excursões predatórias. Se aqui não dá, lá é possível que o coxo seja mais farto.

Há mais ainda. Caso aprovada a emenda constitucional, existe um risco. Ela ser julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. É bom lembrar o julgamento de ação direta de inconstitucionalidade que deu por contrária à Constituição lei ordinária que limito os direitos dos pequenos partidos no cenário político.

A partir do mesmo argumento, uma emenda constitucional pode ser julgada contra os princípios que formam o sistema constitucional e, entre estes, se encontra implícito o direito das minorias de estar presente no jogo parlamentar.

Ai teremos uma novidade no cenário jurisprudencial brasileiro. Uma norma constitucional ser julgada inconstitucional porque contrária ao conjunto de valores constantes de nossa Constituição.

Vale a pena acompanhar esta situação. É repleta de facetas. Permite, com o retorno do tema, recordar um dilema permanente na nossa sociedade. Salvam-se os pequenos partidos, a partir de fundamentos nobres, mas repudia-se a busca da eficiência. Esta não é valor nacional.

Fiquem os pequenos partidos nos parlamentos, na busca de se dar voz às minorias, e afasta-se a possibilidade de se conferir maior celeridade aos processos legislativos.

O tempo abaixo do Equador é insumo irrelevante. Perde-se muito tempo e assim preenche-se os espaços vazios das vidas  de cada um dos nossos parlamentares.

Não há motivos de preocupação. É assim a forma de viver dos latinos, particularmente quando se instalam nos trópicos. Ainda há pouco, o Ministro das Relações Exteriores da República italiana, ao cair o gabinete, proclamou de maneira grandiloqüente: “ Somos um pais de loucos… “

A frase do ministro D’Alema causa preocupação. Acabamos de perder a hegemonia. Temos companheiros em nossa insanidade. Até boa companhia. Repleta de criatividade, mas de baixa eficiência.

O carnaval das cidades brasileiras, assim como das italianas, é coisa séria. O resto é o resto. Tolices de um mundo globalizado onde a eficiência aniquila a alegria de viver.


LEVAR VANTAGEM, A IDÉIA FORÇA

O Congresso afastou de suas preocupações alguns temas. Só pensa, no momento, em Plano de Aceleração do Crescimento e nas leis penais. Enquanto os parlamentares ocupam-se destes assuntos, é bom aproveitar para refletir sobre outros. Evita-se assim a emoção e atitudes voluntariosas, ambas tão próprias da índole brasileira

Bom instante, pois, para uma incursão na propalada reforma política. Querem mudar todos os parâmetros de comportamento existente no país desde 1930, quando os tenentes procuraram modernizar os nossos costumes políticos.

Nos anos trinta, as mulheres conquistaram o direito de votar e a Justiça Eleitoral foi instituída. E, porque funciona bem, essa não merece aplauso dos formadores da opinião pública. A sociedade, porém, a respeita e confia em seus atos.

Mas, vamos lá. Quando se quer realizar uma reforma política em profundidade, deve-se antes recolher os elementos que conformam uma verdadeira democracia.

São muitos e nem sempre claramente identificados. Podemos dizer que, modernamente, é democrata a sociedade que tem como parâmetro de comportamento o respeito aos direitos da pessoa, em suas quatro dimensões, a saber: direitos individuais, direitos sociais, direitos coletivos e difusos e, finalmente, o direito à solidariedade.

Presentes estas gerações dos direitos humanos, já estamos em bom caminho. Há, ainda, a clássica afirmação que exige a separação de poderes – executivo, legislativo e judiciário – para a existência de um verdadeiro estado de direito, suporte principal de uma efetiva democracia.

Podia-se avançar ainda mais, na busca de características de uma democracia regular e, certamente, estariam presente a obrigação de legalidade nos atos públicos e privados, transparência nas ações governamentais e moralidade para todos. Não só, pois, para os agentes públicos.

Ora, em uma visão do cenário nacional todos estes elementos se encontram definidos na nossa cultura política. Ao menos formalmente. Somos, pois, o melhor dos mundos, como afirmaria o perene otimista.

Nada disto. Falta à democracia brasileira o essencial. Padece de ausência de caráter. Ou mais precisamente: vergonha na cara, como diziam nossos antepassados. Sem a certeza na  palavra empenhada, tudo se torna frágil e inconfiável.

Aqui o primeiro tema para uma reforma política. Mas, como caráter exige uma reforma das consciências e isto nem pregadores religiosos têm conseguido, vamos ser pragmáticos.

A primeira ação para a educação, em busca de caráter, é tornar o mandato parlamentar em atributo partidário. O mandato não pode ser conferido a uma pessoa física, o candidato vitorioso, mas sim a um partido, que dele deve ser titular.

O mandato com natureza partidária evitaria os trânsfugas. Estes nômades que se transferem de partido, como aves de arribação, na busca de melhor alimento. Os eleitos estariam vinculados, no decorrer do mandato obtido, ao partido que escolheram no período pré-eleitoral.

A mudança dos eleitos para outro partido, verificadas após cada pleito, desmoraliza, a um só tempo, políticos e partidos e transforma as escolhas em engodo. O eleitor escolhe  um socialista e recebe um conservador. Busca uma personalidade de centro e alcança um direitista extremado.

Os detentores de mandatos eletivos não gostam de ouvir falar neste tema. É a cruz para o diabo. Fogem. No entanto, a chave do problema está na natureza do mandato recebido pelos parlamentares. Enquanto este for vinculado ao eleito e não a seu partido, vão acontecer sempre fugas. Particularmente, em uma sociedade onde ficar longe do governo é inadmissível.

O resto é ciência de quem ouviu a lição, mas não soube digeri-la. Olha só esta cola vinda da Espanha, o voto de lista fechada. Querem que o eleitor escolha uma lista partidária e confira o voto na legenda. Não explicam os autores da proposta que os primeiros da lista serão os eleitos. Ponto para oligarquias partidárias. Só a elas interessa este expediente eleitoral.

Fiquemos com a experiência de setenta anos. Ela teve início nos estudos de Assis Brasil. Os defensores do voto de lista violam os valores nativos e buscam experiências hoje contestadas nas democracias de origem. Nelas, o voto de lista não permite a renovação dos quadros partidários.

Nada pior para uma democracia que a presença de sábios de plantão. Falam sem refletir ou, ao refletir, só pensam em seu quintal, sem perceber nas mazelas que estão gerando para a cidadania. É ver a origem das propostas em curso e se encontrará a mão do gigante. Este é sempre insaciável. Quer levar vantagem, em detrimento dos interesses coletivos.


A VOLTA AO MESMO LUGAR

Há euforia nos meios econômicos. A situação brasileira estabiliza-se. O Brasil deve atingir patamares superiores nos índices das agências internacionais. O cenário financeiro é oportuno, apesar da situação fiscal.

Se tanto não bastasse, a visita do presidente norte-americano, cercada de álcool por todos os lados, permitiu ainda maior elevação do grau de otimismo. As usinas moerão cana de açúcar por toda a parte. As existentes e as dezenas de usinas que se instalarão por todo o país.

A monocultura se estenderá pelo imenso território nacional. Não ficará presa ao litoral e às zonas próximas dos portos de mar. Vai se ampliar por todo o interior. Já tomou São Paulo e fará o mesmo com o centro oeste e demais regiões. Um canavial só.

Tudo bem. A euforia é compreensível. O clima e as terras favorecem a cultura da cana por toda a extensão dos mais de oito milhões de quilômetros quadrados. O sucesso é inevitável. Ainda porque o mundo está temeroso das conseqüências do efeito estufa.

É legitimo, pois, o estado positivo de ânimo. Em termos, porém. Vamos nos entregar a monocultura da cana de açúcar. Exatamente, como aconteceu a partir da primeira metade dos anos quinhentos.

Os engenhos – hoje usinas – irão expandir os canaviais pela paisagem. As imensas plantações de um só produto serão esmagadas e se transformarão em álcool anídrico.

Percorreu-se quinhentos anos para se voltar ao mesmo lugar. Antes somente em Pernambuco, Bahia e São Paulo, se estabeleceram os engenhos e, entre eles, o primeiro investimento estrangeiro em terras brasis: o Engenho do Erasmo hoje objeto de trabalhos arqueológicos na cidade de Santos.

Tanto esforço e luta para se voltar a monocultura. É impressionante. Substituíram-se as importações, em esforço sem igual da sociedade brasileira, a partir dos anos trinta.

Agora, volta-se ao começo. Tudo igual. As terras agriculturáveis utilizadas para o plantio da cana de açúcar. As praias da imensa costa vendidas a pequena burguesia européia e, como no passado, trocadas pelo valor de espelhinhos, encanto dos habitantes nativos.

E se tanto não bastasse, soldados, acantonadas nos desertos da antiga Pérsia, em suas férias, chegam às praias em busca de luxúria, tal como aconteceu quando do desembarque dos primitivos colonizadores.

Estranho destino. Lutou-se durante séculos e retornamos ao mesmo lugar. Não há nesta constatação melancolia ou ceticismo. Apenas a consciência de que nestas terras tropicais caminha-se, caminha-se, e se retorna sempre ao ponto de início de caminhada.

Claro que se poderá afirmar que agora iremos exportar nossa experiência na fabricação de veículos de múltiplos combustíveis, inicialmente marginalizados pelos europeus. Vencemos etapas evoluídas de sofisticação tecnológica.

Mas a imagem que fica é a do eterno retorno. Voltou-se ao ciclo açucareiro. E porque jamais examinamos a História, é esquecida a fuga dos plantadores para as Antilhas e a chegada dos batavos.

O mundo é outro. As circunstâncias são diferentes. A comparação, contudo, não pode deixar ser feita. Na primeira vez, tudo foi heróico e o açúcar plasmou a nacionalidade. O risco é que, na História, alguém já ensino, a repetição de acontecimentos é farsa.

Mas, aqui, nestas terras de sol constante, há sempre um esqueleto de ar que cobre o passado pesado e sufocante, lembrou Faoro. É exatamente o que acontece com o apogeu do álcool anídrico. O passado sufoca e traz recordações amargas para a sociedade.

Poucos tornaram-se participantes da aristocracia açucareira. Milhares sofreram junto as fornalhas e foram expulsos de suas comunidades pelo leviatã da monocultura, que cria riqueza concentrada. Jamais atinge a justiça distributiva, tão ausente de nossa realidade social.

Começa um novo ciclo econômico. Ou melhor, retornarmos ao mesmo lugar, após quinhentos anos. Isto que é coerência. Ou obstinação perversa. As ondas imigratórias se ampliarão. As carências sociais se deslocarão. E o pior. O pouco que resta de comunitário se desagregará.