ANOTAÇÕES PRELIMINARES SOBRE O DIREITO NOS ESTADOS UNIDOS


Os tribunais americanos não se prendem a intenção original da própria Constituição. Examinam as tendências ao longo do tempo.

 

 

As origens remotas do Constitucionalismo norte americano, segundo alguns estudiosos, se encontram em documento sui generis:

o Pacto de Mayflower.

Mayflower era a denominação do barco que transportou da Inglaterra para costa leste dos Estados Unidos as famílias dos quarenta e um signatários do Pacto.

Trata-se de documento seminal.

Os seus signatários – os Pais Peregrinos – pertenciam a um segmento religioso separatista, refugiado em Leiden, na Inglaterra.

Segundo estudiosos, não desejaram solicitar à Companhia da Virginia do Norte autorização para se instalar em qualquer espaço.

Queriam ser livres e titulares do auto governo.

Ainda a bordo, elaboraram e assinaram o documento, hoje conhecido por Pacto de Mayflower.

Neste documento, decidiram, inclusive, eleger um governador.

A escolha recaiu em John Carver, pessoa considerada

“… homem devoto e bom… para ser o governador durante um ano”.

Os pactos eclesiástico ou convênios eram comuns entre os puritanos ingleses e presbiterianos escoceses.

Toda vez que um grupo deixava uma paróquia e criava uma nova, um pacto era lavrado.

Estes acontecimentos se verificaram em 1620.

Aqui, uma curiosidade.

Estudiosos em anos posteriores, 1793, encontraram vínculos entre o Pacto de Mayflower e o Contrato Social de Rousseau.

Na verdade, o Pacto indica de maneira significativa o pensamento inglês do Século XVII a respeito da capacidade das pessoas em exercer o auto governo e da convicção da necessidade de se viver sobre o império da lei.

Em seu preâmbulo, a exemplo de inúmeras Constituições contemporâneas – uma exceção, o próprio Estados Unidos – há expressa referência ao nome de Deus.

 

Declaração de Direitos da Virginia

Na região ora denominada Nova Inglaterra, estabeleceram-se colônias, hoje consistentes nos estados de Maine, New Hampshire, Vermont, Massachusetts, Connecticut e Rhode Island.

Entre estas colônias, encontrava-se Virginia, integrante das pioneiras treze colônias.

A importância de Virginia, na História americana, se dá por inúmeros motivos.

Lá se verificaram as batalhas finais da Guerra da Independência.

Em Virginia se instalou a primeira universidade sob os auspícios de Thomas Jefferson.

Ainda nesta primitiva colônia, que se deu, em 1776, a

“Declaração de direitos feita pelos representantes do bom povo de Virginia, reunidos em plena e livre convenção; direitos que pertencem  a eles e a sua posteridade, como base e fundamento do governo.”

A concretização deste documento verificou-se três anos antes da conhecida Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada pelos revolucionários franceses.

O documento de Virginia encontra raízes no pensamento inglês.

Oferece exposição altamente elevada dos valores do Constitucionalismo dos tempos moderno e contemporâneo.

Leia-se a sua Seção 1:

Todo os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes e tem direitos inerentes, dos quais, ao entrar num estado de sociedade, não podem, por nenhum contrato, privar ou despojar sua posteridade; a saber, o gozo da vida e da liberdade, os meios de adquirir e possuir propriedade, e a busca da felicidade e da segurança.

A Seção 2 aponta para a origem do Poder e a conceituação dos servidores:

[Seção 2.] Todo poder é formalmente conferido ao povo e, por conseguinte, dele deriva; os magistrados são seus depositários e servos e, a qualquer momento, responsável por ele.

São 16 a totalidade das Seções integrantes da Declaração de Virginia.

Para indicar o sentimento dos que a instituíram, transcrevemos esta última Seção, ou seja, a 16:

“A religião, ou a obrigação que temos com o nosso Criador, e a maneira de cumpri-la, só pode ser dirigida pela razão e pela convicção, e não pela força nem pela violência; por conseguinte, todos os homens fazem igualmente jus ao livre exercício da religião, de acordo com os ditame de sua consciência; é dever mútuo de todos praticar a indulgência, o amor e a caridade cristã em relação aos seus semelhantes.”

 

4 de Julho – Declaração da Independência

Em 4 de julho de 1776, em Congresso, decidiram os norte americanos pela

Declaração unânime pela Independência dos Treze Estados Unidos da América.

Nascia a nova república.

Proclamavam as treze colônias a sua independência da Inglaterra.

A parte final do documento de 1776 é eloquente:

“Nós, portanto, representantes dos Estados Unidos da América, em congresso geral, reunido, pedindo ao Juiz Supremo do mundo que dê testemunho da retidão de nossas intenções, solenemente publicamos e declaramos, em nome do bom povo destas colônias e pela autoridade que ele nos conferiu, que estas Colonias Unidas são, e por direito devem sê-lo, Estados Livres e Independentes ….”

O principal autor do documento fundador foi Thomas Jefferson, pensador refinado.

Foi escolhido como terceiro presidente, no período 1801 a 1809.

 

A Constituição dos Estados Unidos

O Congresso que decidiu pela independência dos Estados Unidos permaneceu em atividade.

Em setembro de 1786, Virginia convocou a chamada Convenção de Anápolis, pouco concorrida.

A mesma Virginia solicitou reunião dos representantes de todos os Estados a se realizar em maio de 1787 em Filadélfia.

No dia 25 de maio do citado ano, com a presença de 52 delegados, deu-se a primeira sessão de elaboração da futura Constituição.

Em 17 de setembro de 1787, 39 delegados subscreveram a redação final do documento.

Este, em seguida, foi submetido às convenções estaduais para ser ratificado ou rejeitado.

Eram necessário nove Estados aprovarem o projeto submetido à deliberação.

O nono Estado a decidir pela aprovação foi New Hampshire (1788) e o último a ratificar o projeto foi Rhode Island (1790).

Em 29 de maio de 1790, entrava em vigor a mais analisada e longeva Constituição, a dos Estados Unidos da América.

A demora na ratificação do Documento constitucional deu-se em razão do conflito de ideias entre os federalistas e os ante- federalistas.

Os primeiros desejavam uma União forte e o ante-federalistas imaginavam em uma maior autonomia para as unidades federadas.

 

O Federalista

Esta disputa política e intelectual gerou uma volumosa literatura jornalística.

As peças consagradas desta batalha intelectual se encontram nos

Papéis FederalistasFederalist papers,

a conhecida obra de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay.

Estes documentos publicados, à época, em jornais, posteriormente tornaram-se livro festejado por todos os constitucionalistas.

No Brasil conheceu-se O Federalista, em português, em 1840, como informa a Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais em edição procedida em 1896.

Os autores de O Federalista, Hamilton, Madison e Jay, eram personalidades diversas entre si.

Hamilton, ambicioso, generoso, devoto, orgulhoso, rápido para se ofender e perdoar, mente muito ágil e ativa e de energia inesgotável.

Ele marcou os primeiros anos da nova República.

Madison jovem intelectual, altamente qualificado. Elegeu-se presidente para o período compreendido entre 1809 a 1817.

Jay, por seu turno, jurista, diplomata que negociou a paz com a Inglaterra.

Foi o primeiro presidente da Suprema Corte (1789-1895).

 

 

 

Ainda a Constituição dos Estados Unidos

Voltemos a Constituição:

O documento comemora 231 anos de vigência.

Neste longo período, conheceu apenas a inserção de 27 emendas.

Dentro do nosso campo de estudos cabe analisar particularmente a temática correspondente à interpretação do texto constitucional americano.

Sem esquecer que há autores que consideram a Constituição americana documento elitista, elaborado por delegados que “eram especuladores de terras” e outros que acreditavam ser a democracia  “o pior de todos os males políticos”.

Cabe, neste passo, abandonando a vereda acima, a análise de tema rico na literatura jurídica dos Estados Unidos.

Referimo-nos à

Teoria dos Poderes Implícitos.

O argumento foi arguido por Hamilton, quando assessorava a presidência da República, comandada por George Washington.

A União desejava criar um banco.

Não havia autorização expressa na Constituição.

Hamilton, em parecer, defendeu que o banco era necessário para a arrecadação de impostos e, por consequência, era óbvio – implícito – que deveria ser criado por ser instrumento de cobrança de tributos.

O argumento foi aceito por Washington.

No mundo do Direito, nascia a teoria dos “poderes implícitos”.Estes são, pois, os poderes resultantes de um poder maior, contido no espirito da Constituição.

 

Judiciário e a Constituição

Isto posto, convém uma análise específica do texto da Constituição nos termos da temática do nosso curso, que analisa especificamente a atuação do Judiciário.

O artigo III, Seção I, estabeleceu:

“O Poder Judiciário dos Estados Unidos será exercido por uma Corte Suprema e pelos tribunais inferiores que o Congresso periodicamente criar e estabelecer…”

Não há maiores requisitos.

Apenas a autorização ao Congresso para instituir uma Alta Corte.

Assim foi feito.

O Congresso concebeu a Suprema Corte.

Esta, graças, a magistrados de excepcional inteligência e vigor gerou uma nova visão da leitura do texto constitucional.

Afirma-se que a Suprema Corte age mais

com visão sociológica do que propriamente jurídica.

Isto porque a Corte adapta a leitura da Constituição à realidade do tempo presente.

Há riscos nesta forma de interpretação?

É aparente que sim.

Permite, porém, a aplicação dos preceitos constitucionais de acordo com a mudança de costumes verificados na sociedade.

Forte exemplo deste posicionamento a questão do negro e da jurisprudência da Suprema Corte.

Em 1857, no caso Dred Scott v. Sandford, o Chefe de Justiça Roger Taney decidiu:

Negro é propriedade de seus titulares.

Não é cidadão.

Há quem afirme ser este julgado – considerado infame – uma das causas da Guerra de Secessão.

Avançou, nesta seara, a Suprema Corte, ainda em mau caminho.

Em 1896, no caso Plessy v. Ferguson, o Chefe de Justiça amenizou o anterior posicionamento da Corte, mas manteve preconceito.

Decidiu-se, na ocasião, negros e brancos são iguais, mas separados.

A temática retornou a plenário apenas em 1954.

Em novos tempos, conheceu-se o rumoroso caso Brown v. Topeka.

Aqui, na busca de amalgama entre a realidade e a Constituição, a Suprema Corte proferiu a mais importante decisão na história das relações raciais.

Declarou, na oportunidade, por unanimidade, que devia ser posto fim na segregação nas escolas públicas.

Rechaçou, assim, a doutrina

separados, porém iguais”.

A implementação do julgado encontrou dificuldades.

Particularmente em alguns estados do Sul.

A final, impôs-se o posicionamento federal e da Corte.

 

 

Judicial Review  – Supremacia da Constituição

No cenário jurídico, propriamente dito, a Suprema Corte é autora, por meio do Chefe de Justiça John Marshall, da mais celebrada decisão de uma Corte constitucional.

Referimo-nos ao caso

Marbury v. Madison (1803).

A questão apresenta tema fático corriqueiro no mundo político.

John Adams, presidente da República, nomeou William Marbury juiz de paz do distrito de Colúmbia.

Thomas Jefferson, assumiu à presidência e determinou a Madison , secretário de Estado, que suspendesse a nomeação de Marbury.

A Corte julgou que o presidente não tinha direito de suspender à nomeação, mas, por sua vez, o tribunal não tinha competência para obriga-lo a concede-la.

Concomitantemente, o Tribunal anulou a seção 13 da Lei Judiciária de 1789, julgando-a inconstitucional.

“ A law repugnant to the Constitution is void”

Ou, em vernáculo,

“ A lei contrária à Constituição é nula”

afirmou  Marshall

Nascia assim a rica teoria consistente no

princípio da judicial review,

ou seja,

a possibilidade do Judiciário declarar a lei nula, quando contrária à Constituição.

O julgamento por inconstitucionalidade, hoje presente na pauta de todos os Tribunais e, nos cenários de competência difusa, nas salas de audiências de todos os juízes, tem sua origem neste julgado emblemático.

As Supremas Cortes de Justiça tornaram-se o arbitro final da Constituição.

 

Common law e due process law

Analisadas perfunctoriamente decisões do mais alto Tribunal dos Estados Unidos, cabe para finalizar este estreito estudo, recordar ainda alguns poucos artigos da Constituição de 1791, que tratam de temas vinculados à nossa atenção presente.

A adoção da common law pelos americanos é expressa.

Encontra-se prevista na Seção II do artigo III, quando se fala em equidade, e na Emenda VII ao se referir nos processos segundo a common law.

Pelo sistema da common law, a instituição prevalecente é a

Stare decisis,

isto é, o julgamento conforme os precedentes ou as decisões anteriores consideradas res judicata.

Recente decisão da Suprema Corte, sobre a temática merece breve registro.

Decidiu aquele alto Tribunal, no dia 20 de abril corrente, por maioria, que

“Todo juiz deve aprender a viver com o fato de que ele ou ela pode cometer erros. Mas é uma coisa completamente diferente perpetuar um erro, apenas porque tememos as consequências de fazer as coisas certas”.

Assim, após muitos anos, julgando a partir de precedentes – que permitiam a condenação de réus por mera maioria de votos dos jurados – passou a Corte a exigir a unanimidade dos votos do Júri para o réu ser condenado.

O assunto é encontrado no site Conjur, dia 22 de abril corrente, sob o título “Suprema Corte dos EUA reverte precedente em decisão com implicações políticas”.

Isto posto, outro tema a ser abordado é o que refere ao

devido processo legal,

due process law

também inerente ao direito inglês (lembre-se da Magna Carta), por sua vez, este expressamente esculpido na famosa Emenda XIV, de 1868.

Ficam aqui estas breves considerações sobre a rica escola do Direito norte americano.

Aprofundar-se na temática é dever de todo operador contemporâneo da Ciência Jurídica.

Por cultura e praticidade.

 

 

Referências.

Boorstin, Daniel – Compendio histórico de los Estados Unidos – Fondo de Cultura Económico – México – 1997.

Nevins, Allan e os. – Breve história de los Estados Unidos – Fondo de Cultura Econômico – México – 1996.

Syrett, Harold – Documentos Históricos dos Estados Unidos – Cultrix – São Paulo – 1960.

Stone e os. – Constitutional Law – Little, Brown and company – Boston – 1991.

Ides, Allan e os – Constitutional Law – Wolters Kluwer – New  York – 2016.

Corwin, Edward – A Constituição norte Americana – Zahar – Rio de Janeiro – 1986.

Emanuel, Steven – Constitutional Law – Emanuel law autolines inc. – New Y ork – 1995.

Griffith, Ernest – O Sistema Americano de Governo – Nórdica – São Paulo – 1992.

Goldwin, Robert A. e os. – A Constituição Norte-Americana – Forense Universitária – Rio de Janeiro – 1986.

Site: https://www.conjur.com.br

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