LA PEPA, A PRIMEIRA


Aproxima-se a data da chegada da corte portuguesa ao Brasil. Há duzentos anos a corte retirou-se de Portugal e, após longa viagem, instalou-se no Rio de Janeiro.

Durante anos, o nativismo não permitiu análise isenta do episódio. Após a proclamação da República, muitos eventos ligados à realeza mereceram tratamento superficial, quando não pejorativo.

Em algumas regiões do Brasil, muitos os vestígios da época do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e do Império do Brasil mereceram supressão.

Fragilidades de uma República proclamada sem convicção. Por forma e momento incorretos. O ideal republicano encontrava-se em formação. A ruptura violou a possibilidade de mudança sensata do regime.

Correto, pois, rever episódios históricos longe de visões deformadas. A chegada da Família Real alterou o cenário social e político do Brasil. A acanhada cidade do Rio de Janeiro transformou-se em sede de uma monarquia.

A distância parece pouco. Normal. Um pouco de imaginação demonstra o contrário. Centenas de nobres perdidos nas vias de uma provinciana cidade. A poeira e o calor envolvendo a todos.

O mais ardoroso dos jacobinos não poderia imaginar castigo mais severo. Nobres acostumados ao temperado clima da Península atirados em um país tropical.

Apesar do aparente inusitado, o acontecimento durante anos fora examinado pelos estrategistas portugueses. Uma monarquia na América sempre merecera análise no pequeno Portugal.

Assim foi. Entre suas façanhas, os portugueses tornaram-se a única nação européia a implantar uma monarquia neste continente. Ainda mais, no trópico.

Parece pouco. Mais é muito. A monarquia, em pleno Rio de Janeiro, permitiu alteração significativa nos costumes e hábitos singelos existentes no grande espaço territorial brasileiro.

A partir de 1808, começou-se a plasmar o Estado brasileiro. A incipiente economia globalizou-se com a abertura dos portos. A arte perdeu a boa ingenuidade. A nobreza trouxe consigo as escolas artísticas francesas.

Na política, as melhores cenas aconteceram. O inevitável choque entre brasileiros e portugueses incendiaram paixões. Lutas nativistas se iniciaram. Tão à moda na época, sociedades secretas se espalharam.

Em barcos ancorados, na baia da Guanabara, os membros das sociedades reuniam-se para fugir da polícia e fazer política. Novas idéias aportavam diariamente ao cais do porto.

Explodiu a imprensa. Jornais passaram a circular. Forma-se um embrião de opinião pública. O monarca feliz. Sempre desejou permanecer no Brasil. Os cortesões sentiam o sentimento próprio dos portugueses: a saudades.

Enquanto a saudades corroía as almas, idéias liberais se plasmavam. Às tantas, entre os documentos vindos da Europa, encontra-se a Constituição Política da Monarquia Espanhola, promulgada em Cadiz no dia 19 de março de 1812, conhecida por La Pepa.

O nome carinhoso, conferido àquele documento liberal, possuía um motivo. La Pepa foi promulgada no dia de São José. Recebeu, por isto, o nome popular do santo, em sua versão feminina.

D. João VI e alguns nobres leram o documento. Entusiasmaram-se. Uma monarquia no trópico e liberal. O máximo. O monarca outorgou para o Reino a Constituição Espanhola.

Nada como um dia após o outro. A corte conheceu o novo documento. Espanto e pavor. A onda liberal invadira a Europa. O absolutismo ruía. A burguesia assumia posições. A nobreza tremia.

Era demais. Viver fora da velha Lisboa e ainda levar pelas costas uma Constituição liberal. Ainda por cima espanhola. Ia além dos limites do plausível. Não aconteceram muitas conversas. Apenas o desespero da presença da novidade inesperada e indesejável.

Em vinte quatro horas, caminho inverso. A mão que outorgou, prontamente revogou. Episódio pouco conhecido da cena histórica brasileira. Antes dos movimentos libertadores latino-americanos, o liberalismo tomou contou do Brasil. Apenas por um dia. No trópico tudo se derrete com facilidade. La Pepa não resistiu.

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