DIVAGAÇÕES SOBRE UM MITO


 

Os legisladores são homens limitados a quem o azar colocou a frente dos demais *

 

 

Durante grande espaço de minha vida acadêmica, convivi com o culto ao Senhor de la Brède.

Percorri pelas ruas de Bourdeaux.

Tomei, em imaginação, o vinho por ele produzido.

Aprendi que, em sua volumosa obra, defendeu a divisão dos poderes.

E mais.

A lembrança da inserção, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, deste pensamento orientador:

Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não está assegurada, nem determinada a separação  de poderes, não tem uma Constituição

Dezenas de vez – por que não centenas? – ouvi e aprendi este dogma de fé de muitos constitucionalistas.

Fala-se aqui de Charles Secondat, Barão de la Brède e de Montesquieu (1689-1755).

Este francês, da pequena aristocracia, obteve um cargo de magistrado e, como bom integrante da magistratura, criando precedente, viajou a Holanda, Alemanha e Itália.

Foi, porém, na Inglaterra que se manteve por mais tempo.

Foi hospede de Chesterfield naquele país.

Os ingleses conheceram, nos Séculos XVII e XVIII, momento extremamente complexo de sua história.

Lutavam contra o absolutismo e implantaram a república, após a degola de um rei.

Surgiam, no pensamento insular, figuras de grande capacidade intelectual e firmes convicções religiosas.

A filosofia de John Locke influiu na mente de franceses, visitantes da Inglaterra, como Voltaire e o próprio Montesquieu.

Ocorre que, ao importar Locke, os franceses omitiram a qualidade mais característica  – em todo o caso a mais inglesa –o racionalismo político de Locke.

É o que nos ensina George Sabine.

Parece ser verdade.

A obra de Montesquieu mostra-se esparsa e tumultuada, particularmente, em seu clássico Espirito das Leis (1748).

Na verdade o autor francês, um aristocrata conservador, foi um receptor de Locke no continente.

O capítulo VI de seu livro mais famoso é expressivo para se atingir esta conclusão.

É dedicado às Leis da Inglaterra.

A famosa tripartição dos poderes não tem em Montesquieu o alcance que lhe atribuíram seus sucessores, afirma Jean Touchard.

Ele – prossegue o mesmo autor  – se contenta em afirmar que o poder executivo, o poder legislativo e o poder judiciário não devem encontrar-se nas mesmas mãos.

Continua Touchard:

de nenhum modo pensa – Montesquieu – em preconizar uma rigorosa separação entre os três poderes.

Consta-se que autores ingleses e franceses mostram-se perplexos sobre a extensão que tomou a repartição dos poderes da obra do Barão.

Não teve a amplitude proclamada.

Na verdade, Montesquieu foi um diletante intelectual que, a par de suas Cartas Persas, uma sátira bem humorada, deliciou-se em escrever sobre costumes políticos.

Temia o absolutismo e, como aristocrata, não deseja enfrentar o regime de frente.

Tangenciou sua preocupação ao elaborar sua obra principal, Espirito das Leis.

Era um bom caráter.

Não é difícil constatar.

Dizia:

Não sei odiar.

Apontava para o remédio às angústias:

Nunca tive um desgosto que uma hora de leitura não tenha afastado.

Afirmou:

Tudo me interessa, tudo me assombra. Meu espirito se interessa por tudo.

Certamente, foi esta sua vontade de recolher situações novas que o levou a elaboração de sua mais conhecida obra.

Oportuno frisar que Montesquieu reconheceu que havia descoberto a separação dos poderes mediante o estudo dos documentos fundamentais ingleses.

Este aristocrata – festejado por muitos brasileiros, em aulas de Direito Constitucional – foi uma figura singular.

Um erudito capaz de observar  as realidades políticas e transportá-las para uma França pré-revolucionária.

Certamente, sentiu Montesquieu na atmosfera política que tempestades se anunciavam.

Quis prevenir.

Foi em vão.

A Revolução Francesa eclodiu e deu ensejo a um dos períodos mais tumultuados da história política da Europa ocidental.

Registre-se ainda:

Há autores que consideram Montesquieu um vanguardeiro da Sociologia ao examinar a influencia do clima sobre as sociedades.

Pelas múltiplas páginas que os estudiosos da história das ideias dispende com o autor examinado, pode-se considerar sua importância.

Não é limitada.

Esta amplitude confere crédito aos constitucionalistas que se debruçam tão intensamente sobre a obra do Barão.

Eles contam com razões de sobra.

 

Referências.

Touchard, Jean – Historia de las ideas políticas – Tecnos – Madrid – 1998.

Sabine, George H. – Historia de la teoria política – Fondo de Cultura Economico – Mexico– 2000.

Ory, Pascal e os. – Nouvelle Histoire des Idées Politiques – Hachette – Paris – 1987.

Straus, Leo e o. – Storia dela filosofia politica – il melangolo – Genova – 1995.

Volpi, Franco – Enciclopedia de obras de filosofia – Herder – Barcelona – 2005.

* Montesquieu in Touchard.

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