Lá no Leste Europeu, em plena vigência do comunismo, um homem elevou sua voz contra o totalitarismo. Era voz tênue, proferida no interior de um pequeno teatro localizado em Praga, capital da República Checa.
Foi preso e encarcerado por quatro anos. Libertado, continuou a refletir sobre o destino das pessoas e a importância da liberdade. Participou da Primavera de Praga, revolta popular contra o comunismo.
Escritor e teatrólogo, quando da reconquista da democracia, se elegeu presidente de seu país. Esta personalidade de traços singulares é Václav Havel, um pensador.
O nome do primeiro presidente democrático da República Checa retorna ao noticiário no interior do cenário de sua predileção, o mundo do teatro. Acaba de lançar uma peça com título sugestivo: Retirando-se.
O simples retorno de Havel à área de sua predileção pessoal já seria um acontecimento a ser registrado. Há mais, porém. Aquele que foi presidente por doze anos passa, agora, a examinar o Poder e seus reflexos nas pessoas.
A perda da individualidade, pelo exercício do Poder, sempre foi uma das grandes preocupações de Havel. Este já seria um bom motivo para se aguardar a chegada do texto ao Brasil.
Antes, porém, pode-se propor um questionamento sobre a figura do político. Havel abandonou a vida política. Refugiou-se na literatura. Voltou a pensar livremente.
Um exemplo. Ele deixou a cena pública e singelamente retornou ao teatro, palco de seus primeiros atos em defesa dos direitos humanos e das liberdades.
Não se manteve agarrado à política partidária. Soube atilar com o momento de dizer um basta e voltar a ser uma individualidade. Raro exemplo. Aqui, nestes tristes trópicos, ninguém se retira. Muda de partido.
É constrangedor o aspecto de velhas personalidades arrastando-se pelos corredores dos parlamentos ou batendo às portas dos palácios governamentais à busca de benesses imerecidas.
Poucos voltam às origens após o esgotamento de mandatos ou o exercício de cargos administrativos. Há uma atração doentia pelo Poder nestas terras ensolaradas.
Agarram-se a minúsculos espaços de Poder. Não o largam por mais açoites morais que recebam. Há uma tenacidade única na busca de manter espaços. Esta tenacidade é dramática e servil, em um mesmo tempo.
Herança de nossos antepassados, certamente. Faz parte do DNA da nossa política. Gosta-se de emprego público ou das proximidades do poder. Viver distante dos poderosos é demérito. Leva à depressão profunda.
Daí a importância do ato de Havel. Deixou tudo. Retirou-se e retorna ao ponto de onde partiu. Volta ao teatro com texto autobiográfico. Retrata – como informam os registros – a luta da pessoa por preservar sua identidade.
Difícil. No cotidiano da política, perde-se a cada dia um pouco de si. Os gestos mudam. A voz se altera. A alma, muitas vezes, se apequena. Os poucos momentos de realização são sucedidos pelo menoscabo de muitos.
Tudo é objeto de crítica. Em determinados observadores há a vontade incontida de destruir. Magoar. Amesquinhar quem se encontra no exercício de cargos públicos.
É processo antropofágico explicável. Ainda que democrático e republicano, o Poder perturba os observadores. Estes desejam destruí-lo em processo de remição de suas próprias culpas.
O governante – um humano como outro qualquer – no imaginário do observador torna-se alguém que tudo pode, quando, na realidade, se encontra limitado em todas as ações.
Subordina-se às leis e as suas fragilidades individuais. Quando se encontra seguro, sob o ponto de vista da legalidade, recebe os impulsos negativos das assessorias.
Rompe, finalmente, o cerco interno e aí enfrenta os aparentes aliados que, costumeiramente, colocam obstáculos a sua ação. Um moto-contínuo de obstáculos. Um infinito labirinto de dificuldades.
Esta é a vida kafkiana do administrador público. Daí a importância de se registrar a trajetória de Havel. Um homem que se retirou para reencontrar sua identidade.
Quantos no Brasil procederam a idêntico exercício? Raros. Tão raros que poderão ser contados nos dedos de uma única mão. O apego ao Poder é um traço da identidade nacional.