SANTIDADE EM SÉRIE


A santidade é um atributo de poucos. Indica a perfeição, elemento incomum entre os humanos. As pessoas, por palavras ou ações, tendem a se fragilizar.

 

Qualquer teólogo aponta para as dificuldades de se atingir o estágio de santidade. Sabe que os humanos tendem a romper padrões e, em momentos diversos, ferem preceitos estabelecidos.

 

Daí a perplexidade oriunda dos últimos sinais emitidos por Roma. Uma série de personalidades é declarada santa. Um taylorismo jamais praticado pela hierarquia romana.

 

Dirá um cético: sinal dos tempos. Realmente, vive-se um período da humanidade onde o coletivo substituiu o singular. Onde o consumo de bens e imagens é soberano.

 

No passado, o sagrado era dominante. Hoje, o materialismo sem causa domina as vontades e os costumes. Daí certa perplexidade na proclamação de dois santos de uma só vez.

 

Ainda porque ambos, no caso presente, participaram do vértice da hierarquia e, por esta mesma hierarquia, são reconhecidos como santos. Há certa dificuldade para a compreensão do acontecimento.

 

Os dois papas – João Paulo II e João XXIII – apresentaram-se, durante seus pontificados, como personalidades fortes e com claros posicionamentos. Em épocas diferentes, apontaram caminhos.

 

João XXIII foi o pontífice do “aggiornamento”. Recebeu uma Igreja profundamente conservadora e submissa às tradições eurocêntricas e a entregou arejada.

 

São nítidas as transformações oriundas do Concílio Vaticano II convocado pelo Cardeal Roncalli, o Papa João XXIII. Estas se espelharam no culto e nas orações.

 

É famosa sua primeira aparição aos fiéis. Dirigiu-se à lua, que se apresentava bela e plena nos céus de Roma. Seu ato foi apontado por muitos como um gesto panteísta.

 

João XXIII foi amado em vida por seguidores de sua Igreja e por adeptos de outras religiões. Era um homem bom. Seu legado perdura e suas lições próprias do humanismo italiano calaram fundo nas consciências.

 

João Paulo II tem outra origem. Veio da Polônia, país onde se encontram presentes, de maneira flagrante, os princípios tridentinos. Rigor no culto e posicionamento repleto de ortodoxia. Lá se refugiaram os jesuítas, quando expulsos de outros países europeus.

 

Este pontífice foi uma das personalidades mundiais que, por atitudes nítidas, ajudou a colocar fim no socialismo real em todo leste europeu. Foi, na verdade, um combatente contra o materialismo histórico.

 

As duas personalidades – agora elevadas à santidade – merecem registros históricos com traços muito fortes. Trabalharam em campos diversos, mas com objetivos comuns.

 

Desejaram o encontro de seus seguidores com situações existentes e que ferem os valores históricos do Ocidente. Suas personalidades se apresentaram como diametralmente opostas.

 

Um era homem do diálogo, o italiano. O outro, o polonês, pessoa de forte conservadorismo. Parecem possuir muitos atributos próprios da santidade.

 

Choca, contudo, a aproximação de suas vidas com o ato da consagração. Tudo tão rápido. O tempo parece não ser mais um elemento de recolhimento.

 

O mundo contemporâneo exige imediatismo. Nada de reflexão. Já não se pode esperar. É preciso consumir imagens e difundi-las “urbi et orbe” pelos meios eletrônicos de comunicação.

 

Longe ficou o silêncio das catedrais. O cantochão já não eleva as almas. Tudo é massificado. As linhas de produção venceram. Só resta o conforto da meditação silenciosa no interior da consciência de cada um.

 

Se houver tempo.

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