O SÉCULO XVI EM PLENO SÉCULO XXI


Na moderna Brasília, produto do ímpeto de um povo em busca de afirmação, retorna-se a debate tão velho como a própria América Meridional.

Com linguagem contemporânea, retomam-se velhos embates próprios do século XVI, época em que se discutia se os índios, habitantes das terras descobertas pelos navegantes ibéricos, possuíam alma.

Alguns, naqueles tempos, concluíram que os índios não passavam de meros macacos e, portanto, sem alma e vontade própria. Seria melhor exterminá-los.

Levantaram-se vozes. Bartolomeu de Las Casas, o indomável pregador, afrontou conceitos e costumes. Defendeu os índios com coragem e denodo. Permitiu o surgimento das primeiras leis sociais na nova parte do mundo.

Sepúlveda, também sacerdote, colocou-se em posição oposta. Os índios podiam ser escravizados. Domados. Seviciados. Os conquistadores sentiam-se orgulhosos de sua ação religiosa.

Este o motivo aparente das suas expedições: a catequese. Acrescentavam, nas entrelinhas, o objetivo real da missão: os proveitos que “poucas vezes cabem em um saco“.

A expressão indica a rapina exercida sobre as riquezas da terra. Inclui, de passagem, a violência contra os índios. Dizimados. Gente bárbara. Não eram capazes de compreender os mistérios da religião oferecida.

Firmava-se, como conseqüência, a doutrina da tutela do bárbaro – leia-se os índios – pelos prudentes, assim adjetivados os conquistadores dos primeiros anos de colonização.

Agora, manejando o relógio do tempo, volta-se a debater sobre índios e seus espaços. O processo, ora na pauta do Supremo Tribunal Federal, reconduz a cidadania a tempos remotos.

Quantas variáveis se apresentam a exame: a preservação da cultura indígena e de seus valores. A integridade do território nacional, sem espaços vazios. A preservação das fronteiras com os países vizinhos.

Não é equação de fácil solução. Os ministros do Supremo Tribunal Federal meditarão, com certeza, sobre cada um dos temas indicados. Sabem que o julgamento é acompanhado com acuidade e interesse.

Ao se tornar uma corte ativa, como da natureza dos tribunais constitucionais, o Supremo passou a figurar diariamente nas pautas dos meios de comunicação.

Ninguém mais ignora sua existência. A sua condição de intérprete e guardião da Constituição o transformou em dinâmico instrumento de preservação dos direitos da pessoa.

Estes examinados sob visão contemporânea, onde todos são titulares de atributos e garantias asseguradas constitucionalmente, desconsideram os tempos em que se dividiam as pessoas em prudentes e bárbaros.

As múltiplas culturas, em uma sociedade complexa como a brasileira, merecem preservação. A capacidade de convivência entre visões diversas diferencia a nossa nacionalidade.

Difícil, pois, a missão da Alta Corte Constitucional no caso de Roraima. Não pode afastar os legítimos interesses das tribos indígenas. Buscar a eventual preservação do plantio estendido por áreas novas.

O tema não encontrará sucedâneo na jurisprudência de outras Cortes Constitucionais. Nem por aproximação. Só, no longínquo século XVI, os debates se centraram em assunto análogo.

Os conquistadores, particularmente espanhóis, falaram sua linguagem e impuseram suas intenções dominadoras. Eram outros tempos e outras premissas se colocavam. A fé permitia a prática de muitos crimes.

Em um estado laico, os argumentos utilizados no passado são impensáveis. Só o bom senso, a sensibilidade social e a submissão à lei poderão preservar todos os interesses em conflito.

Os olhos e ouvidos da cidadania se voltam para as falas de cada um dos onze ministros. Romper posicionamentos tradicionais nas relações entre grupos étnicos não será fácil.

Qualquer que for a decisão haverá protestos. É próprio da democracia. Quando as minorias obtêm a manutenção de seus espaços, as maiorias sentem-se agredidas.

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