O BOM GOVERNO, A BUSCA INCESSANTE


No interior das múltiplas culturas, a humanidade possui um anseio perene e raramente concretizado. Este anseio se sobrepõe a todos os demais. Mereceu a reflexão de pensadores e filósofos. Santos e pecadores. Figuras sensatas e contumazes desvairados.

 

Apesar da busca milenar, ainda pessoas se debruçam na procura da concretização deste anseio. De maneira obstinada,  muitas vezes compulsiva, romântica ou pragmática. O objetivo, contudo, no diuturno das sociedades nunca foi plenamente atingido.

 

Procuram-se os atributos de um bom governo. Um governo capaz de conferir à coletividade liberdade, bem estar, segurança e futuro. Um governo onde os administradores saibam suas obrigações e preservem a legalidade.

 

Cada cultura possui sua peculiar forma de pensar um bom governo. Confúcio (551-479 a.C.) ensinou aos  chineses que “se o homem  justo existe, o governo é próspero, se o homem justo não existe, o bom governo está acabado” [1]

 

Justo é a pessoa benévola. Aquela  que ama o seu povo como ama  a si mesmo e faz todo o esforço para trazer-lhe benefício. Para configurar bons governos, reporta-se o mestre à figura de três imperadores, Yao, Shun e YU, que governaram antes do século XXI a.C., segundo as lendas chinesas.

 

Percebe-se que o núcleo da filosofia de Confúcio era a benevolência, herdada diretamente da tradição humanista, originária da antiga sociedade de clãs.

 

Segundo Confúcio, a benevolência implica, em primeiro lugar, o amor pelas pessoas; em segundo lugar, o dever de se comportar com lealdade e altruísmo para com os outros; em terceiro lugar, o empenho para cultivar em si a personalidade ideal: o homem justo deve ser um sábio que tem todas estas boas qualidades. O justo governa educando com o exemplo de sua personalidade perfeita.[2]

 

A doutrina confuciana gira no interior de um cenário dialético, onde se apresentam dois termos: zhong que indica a lealdade, o comportamento positivo no modo de tratar os outros, e o shu que aponta para o comportamento negativo perante os outros.

 

Destes termos Confúcio extraia um ensinamento: basta um só princípio para entender o caminho para o bom governo. A lealdade e a reciprocidade, e nada mais.

 

Confúcio e Mêncio, mestres do humanismo chinês, advogavam que o governo dos homens significa também o governo do bom exemplo. O dever do governante é o de aperfeiçoar suas qualidades morais para atrair as demais pessoas.

 

São cinco as qualidades que permitem ao governante atingir a benevolência e, consequentemente, um bom governo, no pensamento do humanismo chinês:

 

      respeito, magnanimidade, sinceridade, solicitude e generosidade.[3]

 

 

Ilustrativo é diálogo captado no interior da tradição chinesa. Ele  indica o rigor exigido pelo Mestre na relação entre  governados e governante. A este último impunha  que gozasse da plena confiança do povo:

“ Uma vez um discípulo perguntou a Confúcio:

“Quais são os ingredientes para um bom governo?”

Ele respondeu:

“ A comida, as armas e a confiança do povo.”

Mas, prosseguiu o discípulo,

“se fostes constrangido a renunciar a um entre os três ingredientes, a qual renunciarias ?”

“Às armas”

“E se devesses eliminar um outro?

“ Os alimentos”

“ Mas sem alimentos a gente morre !”

“ A morte representa desde tempos imemoráveis o inevitável destino dos seres humanos, enquanto que um povo que não tem mais confiança nos seus governantes é verdadeiramente um povo perdido”[4]

 

Os ensinamentos chineses, próprios de uma cultura autóctone e com perfil tão característico, apresentam-se com  traços e raízes diversos dos presentes no humanismo ocidental, porém não conflitantes.

 

Consciente da importância da reflexão[5], a civilização árabe oferece inumeráveis textos sobre a cidade perfeita, produto do bom governo. Ibn Jaldún (1332-1406), historiador e político muçulmano, em sua grandiosaIntrodução à História Universal (Al Muqaddimah), dedica vários capítulos a ensinamentos sobre a arte de governar e registra como devem se portar, em altos cargos, os administradores.

 

A sua mundovisão, onde estão presentes a vida urbana e a nômade, reporta-se a todo momento aos ensinamentos do Profeta Moamé, como exige a presença teocrática no pensamento político do Islã.

 

Nas exposições de Ibn Jaldún há forte carga pessimista e um expresso determinismo, que se manifesta, entre outras passagens, na seguinte:

 

“as sociedades são fenômeno natural que se apóia em dois elementos determinantes: a economia e a segurança.”[6]

 

Os valores presentes são diversos do pensamento ocidental, ainda porque a segurança exige governos enérgicos, admirados pelo historiador.

 

Em sua extensa obra, são mil, cento e sessenta e cinco páginas, na edição espanhola, em momentos diversos,  Ibn Jaldún desenvolve elucubrações sobre o bom governo. Emerge a lição do historiador, na busca do bom governo, em trecho a seguir transcrito, colhido a esmo :

 

“Os persas escolhiam sempre para rei um membro da família real conhecido por sua piedade, sua bondade, sua instrução, sua liberalidade, sua valentia e sua generosidade e, ainda, o faziam tomar o compromisso de governar com justiça, de não exercer nenhuma profissão que pudesse prejudicar os interesses de seus vizinhos; não exercer comércio, para não procurar o aumento de preços, e não ter escravos a seu serviço, porque jamais dão bons e úteis conselhos.”[7]

 

Na cultura ocidental a busca do bom governo se inicia no período clássico

(700 a 300 aC). Os gregos, por meio de seus filósofos e teatrólogos, lançaram-se no elaboração dos fundamentos de um governo bom. Combateram as tiranias e esboçaram as configurações adotadas pelas democracias contemporâneas.

 

Pouco recordado nos manuais acadêmicos que tratam de temas políticos, Epíteto (50 d.C- 125?), em seu pequeno livro, aponta traço da integração do estoicismo com o cristianismo. Foi professor do Imperador Adriano e dedicava-se com vibração ao tema liberdade.

 

Os seus ensinamentos são relevantes para quaisquer pessoas e, particularmente, para governantes, na prática do bom governo. Indicam bom senso e moderação. Dino Basili[8], em versão livre, capta ensinamento de Epíteto:

 

“ Se conseguires encontrar, com ajuda da moderação, o justo equilíbrio entre o ter e o ser, rolarás no precipício sem fim dos desejos. Recorda-te que o senso do limite, uma vez perdido, raramente é readquirido”

 

Platão (427?-347 AC) escreve “O Político” após sua permanência junto ao rei Dioniso I da Sicília.  O filósofo se encontra decepcionado com a figura débil, irresoluto e hipócrita do soberano. Ainda porque fora à ilha, a velha Tribeca, com sua admirável obra “A República”.[9]

 

Desta maneira, “O Político[10] registra a inquietude de Platão. O estado ideal previsto em “A República”mostrou-se de difícil implantação. Agora, o filosofo imagina confeccionar um tecido, onde todos os pontos devem ser juntar para gerar a harmonia.

 

Como se concebe o estado ideal?

 

O estrangeiro, uma das figuras do diálogo contido em “O Político” observa:

 

… aqui esta a final a tela tecida com reta urdidura por obra da ação política: em pontos de homens enérgicos e equânimes, uma vez, unindo suas vidas pela concórdia e amizade, os conjuga a ciência real, logrando assim a mais esplêndido e magnífico de todos os tecidos; e abraçando aos demais nas cidades, sem exceção, a escravos e homens livres, os reúne estreitamente na trama, e sem deixar-se atrás nada que convém a possível felicidade de uma cidade, a governa e a preside”

 

Sócrates (470 ?- 399 a.C), um entre os debatedores, responde e finaliza a obra:

 

“ com magnífico traço, estrangeiro, destes agora a figura do varão real e político”

 

Ou seja, aquele capaz de unir pessoas e levá-las em harmonia a cumprir os objetivos para se obter uma estado ideal. Platão, ao conceber este diálogo, já no final de sua vida, demonstra suas frustrações no trato com os políticos e suas artimanhas.

 

No entanto, não se furtava ao oferece, apesar das frustrações com o trato da política, elementos capazes de gerar um bom governo. Tecer, tecer zelosamente a harmonia e a união entre as pessoas

 

Os romanos por seus pensadores identificaram os comportamentos humanos que levariam ao aperfeiçoamento individual e, assim, à possibilidade de forjar-se bons governantes. Marcus Tullius Cícero (106-43 d.C.) é expoente do pensamento estóico na Roma clássica.

 

Aponta, como traço de um estado onde há bom governo, aquele em que todos trabalham e todos ocupam-se de assuntos políticos e, para tanto, devem ser informados de todos os assuntos, desde os de maior importância até aos mais insignificantes.[11]

 

Já o pensamento hebreu, em livro sapiencial, legou à posteridade verdadeiros compêndios de boa administração. Nestes as regras de conduta dos governantes são fixadas com singeleza e precisão, a partir de uma visão teocêntrica:

 

“…  integridade, justiça, e equidade é que conduzem a todos os bons caminhos” [12] 

“quem busca justiça e bondade encontra  vida, prosperidade e honra[13]

 

O pensamento humano prosseguiu incessantemente em busca do bom governo, como que a procura do Graal inatingível por mãos pecaminosas.

Andou pelas veredas da Idade Média e, neste período,  por intermédio de uma obra plástica, oferece comoventes figuras indicativas do bom governo.

 

Na cidade de Siena, quando esta se constituía em república, os seus dirigentes determinaram a confecção de imenso afresco no interior do Palazzo Comunale, no espaço urbano conhecido com Cortile del Podestà.

 

Na antiga Sala do Governo dos Nove, chamada Sala da Paz, onde se reuniam os nove magistrados que governavam Siena, em uma das paredes se lança a expressiva obra de Ambrogio Lorenzetti denominada aAlegoria do Bom Governo. É obra prima.

 

O artista captou todos os ingredientes, próprios dos anos trezentos, quando o pensamento fervilhava em busca de novos patamares e rompimento de velhos dogmas. O cristianismo imperava por todo o Ocidente e a República Cristã se encontrava solidamente implantada.

 

Uma só era a fé. Muitos os governantes. A Europa estava divida entre inúmeros feudos e cada um destes tinha uma forma de governo e cartas forais que indicavam os direitos e deveres dos súditos.

 

Neste clima, Ambrógio, nos anos de 1338 e 1339, lança nas paredes do Palazzo Comunale o belíssimo afresco que, de acordo com os valores da época, é uma das mais expressiva obra a respeito do bom governo:

 

“A alegoria  nasce de uma figura bíblica, a Sabedoria, representada no alto, à esquerda, por uma mulher coroada, que olha para a haste de uma grande balança, em perfeito equilíbrio, vêem-se figuras que representam a justiça distributiva e a justiça cumulativa, aparecendo no meio a personificação da Sabedoria, esplendidamente vestida. Acima dela, lê-se Diligite justiam qui judicatis terram – “ Amai a justiça, vos que governáis a terra”.

Este versículo, pelo qual se inicia o livro da Sabedoria, está escrito como admoestação à Câmara Comunal que se reunia nessa sala.

Debaixo da figura da Justiça, vê-se outra personagem feminina, que tem sobre os joelhos uma plaina (para nivelar os ambiciosos, na qual esta escrita a palavra Concórdia.

O sentido dessas figuras sobrepostas é bastante claro: da  Sabedoria de Deus desce a Justiça humana, em todas as suas formas; da Justiça também se origina a concórdia ou harmonia na vida da cidade.

A partir da figura da Concórdia começa a procissão de cidadãos, de diversas condições sociais (como se pode ver pelos vários tipos de vestimenta): artesãos e profissionais, um padre, um soldado, nobres e funcionários públicos.

Estes se dirigem para um palco elevado, onde estão sentados sete personagens, dos quais seis mulheres com os nomes escritos acima de suas figuras: trata-se das virtudes paz, fortaleza, prudência, magnanimidade, temperança e justiça.

Entre elas se apresenta um ancião, figura de grande dignidade, com um cetro n mão direita, que representa a República. Sobre sua testa vêem-se as figuras tradicionais das virtudes teologais: Fé, Caridade e Esperança.”[14]

 

Todos os elementos para a obtenção de um governo perfeito para a  cidade, no sentido político do termo, na visão clássica de civitas ou polis, se encontram no mural elaborado pelo artista medieval.

 

Lá se apresentam de maneira altaneira a Sabedoria, como dom advindo de Deus, a Concórdia, sem a qual falece a possibilidade de equilíbrio social, e as virtudes superiores: Fé, Caridade e Esperança.

 

Além das figuras estampadas, completam a cena as demais virtudes , tão esquecidas neste Século XXI:

 

paz, fortaleza, prudência, magnanimidade, temperança e justiça.

 

A república, regime adotado por Siena, é representado por um ancião, figura que indica o conhecimento acumulado e a capacidade de assistir sem emoções os embates políticos. Bem diferente da jovem e destemida Mariene, adotada pelos revolucionários de 1789.

 

O medievo foi longo período. A religião dominava as mentes. Eram estreitos os limites geográficos das pessoas. As pestes geravam temor permanente. Neste clima, entre os anos de 1415 a 1424, surge um manuscrito que permaneceu devoção cristã. É atribuído a Tomás, nascido em Kempis, cidade próxima a Colônia, daí ser conhecido como Tomás de Kempis.

 

 

A Imitação de Cristo (Imitatio Christi) não foi dirigida especificamente a governantes, mas estes certamente o utilizaram a similitude de um livro de horas, os devocionários próprios para culto e meditações interiores.

 

Elaborado em período de grande depressão social,  Imitação de Cristo macera o corpo e exalta a alma.  Condensa, em sua configuração medieval, a piedade cristã e se tornou um clássico espiritual.[15]

 

No Capítulo XXXVIII do livro de Tomás de Kempis[16], há significativa reflexão sobre as coisas do mundo, das quais se ocupam os governantes:

“Filho, em todo o lugar, em qualquer ato ou ocupação externa, deves procurar, com diligência, conservar-te interiormente livre e senhor de ti mesmo, de modo que todas as coisas estejam sujeitas a ti e não tu sujeitas a elas.

Deves ser senhor e diretor dos teus atos e não servo ou escravo; antes livre, como verdadeiro israelita, que partilha a condição e liberdade dos filhos de Deus.

…..

Não se deixe atrair e prender pelas coisas temporais, mas serve-se delas para o fim a que foram ordenadas por Deus e instituídas pelo supremo Artífice, que nada fez sem ordem em suas criaturas.”[17]

 

O cristianismo buscou captar e transmitir aos governantes as diretrizes para um bom governo. Os limites da lei eterna sempre estiveram presentes nesta incessante procura.

 

Com a explosão de idéias na Renascença, particularmente italiana, alteraram-se os parâmetros, mas não se ignoraram os valores cristãos, mesclados com as raízes judaicas, gregas, romanas e, em determinadas regiões, com os conhecimentos originários da cultura islâmica.

 

A só tempo, a Renascença foi um momento perturbador e criativo inigualável na história da humanidade. Velhos preconceitos se desanuviaram. Novas concepções se estabeleceram. Nada se manteve sem análise. Tudo foi passado a limpo.

 

No campo político, o Renascimento permitiu a concepção de novas instituições e gerou o arcabouço das contemporâneas democracias. O seu traço vulcânico é expressivo. As lavras da Reforma alteraram a maneira de pensar e deram dignidade a pessoa, tornando-a uma individualidade.

 

O Concílio de Trento (1545-1547) exigiu um retorno do catolicismo aos valores proto-cristãs, sem, contudo, abdicar da pompa e do ritual grandioso. Gerou uma justiça dramática pelos seus objetivos e práticas. Os tribunais da Santa Inquisição. A Inquisição esteve presente no Brasil até 1821, quando foi declarada extinta em Portugal.

 

Entre os autores que marcaram este período, cumpre recordar Giordano Bruno (1548-1600), que defendia o comportamento humano altruístico, sem qualquer concessão ao ascetismo[18]. Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) dedicou-se ao estudo das tradições arábicas de Averróis e da filosofia judaica medieval.

 

Pico della Mirandola, em sua obra mais famosa, Discurso sobre a dignidade do homem (Oratio de dignitate hominis), ingressa em tortuoso tema: nega a proposição neoplatônica de que o homem é intermediário entre os mundos terreno e divino. O homem está fora desta hierarquia e possui capacidade ilimitada de autodesenvolvimento espiritual. Estava concebida a individualidade. O uomo singulare, o uomo único, uomo universale que atende aos estágios mais elevados do desenvolvimento individual.[19]

 

Mas, a par dos pensadores dedicados às especulações filosóficas, no campo político, a figura mais polêmica e inovadora da Renascença italiana é Niccolò Machiaveli (1469-1527). Autor de duas obras fundamentais para o pensamento político: Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio e do polêmico O Principe (1532, primeira edição).

 

O político Machiaveli distinguia-se pela forma polêmica e ardorosa de suas posições. A partir do estudo dos clássicos, captou ser a natureza humana inalterável e entendia a política como a arte de lidar rapidamente com  as contingências sociais. Daí não poder a política suportar-se na visão do agir em busca da salvação final.

 

As suas lições para a concretização de um bom governo ferem a moralidade  média, mas mostram-se imbuídas de um pragmatismo pleno:

“ … se será melhor ser amado que temido ou vice-versa. Responder-se-á que se desejaria ser uma e outra coisa; mas como é difícil reunir-se ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido que amado, … os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos por dinheiro e, enquanto, lhes fizeres bem, todos estão contigo, oferecem-te sangue, bens, vida, filhos …. desde que a necessidade esteja longe de ti.

 

Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte. E o príncipe, se confiou plenamente em palavras e não tomou precauções, está arruinado. Pois a amizade conquistada por interesse, e não por grandeza e nobreza de caráter, são compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário.

 

E os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos se fazem temer, porque o amor é mantido por um vinculo de obrigação, o qual devido a serem os homens pérfidos é rompido sempre que lhes aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio do castigo, [20]que é um sentimento que não se abandona nunca.”[21]

 

Machiavelli tornou-se um autor controvertido, estigmatizado e execrado. Mas, modernamente, surge a consciência de sua visão ética da política, pois buscava preservar o Estado a serviço da comunidade. Lutou corajosamente contra os exércitos mercenários, inconfiáveis e usurpadores dos tesouros públicos. Buscou a unificação da Itália.

 

Em seus comentários sobre a Primeria Década de Tito Lívio, o autor dá, ainda uma vez, seu testemunho forte e coerente sobre o ato de governare confere à liberdade um lugar de importância:

 

“O contrário acontece nos países que vivem sem liberdade: quanto mais cruel sua servidão, mais lhes falta a prosperidade.”[22]

 

Ainda no decorrer da Renascença, em espaço geográfico diverso, se eleva a figura de Erasmo de Roterdã (1466-1536), um reformador que jamais rompeu com Roma. Serviu a monarcas e foi controverso.

 

Erasmo expunha aos monarcas idéias originárias da filosofia estóica. Para esta a concórdia era cósmica e permite manter elementos dissidentes em harmonia. Ainda mais. Um outro conceito era o de humanitas, que exclui a ânsia de vingança e, ao invés desta, imprime no espírito a magnanimidade, aquela grandeza de alma que não fica ressentida com uma desconsideração nem alberga rancor. Um homem dotado destas qualidades tem dignidade e o homem é sagrado para o homem.[23]

 

Erasmo, em seu livro irônico, quase sarcástico, Elogio à Loucura, em momento de equilíbrio, aconselha aos governantes:

 

“ Aquele que tem o timão do estado se faz administrador dos negócios público, não de seus privados, não deve distanciar-se nem um dedo da lei, da qual ele é o autor e ao mesmo tempo executor, deve responder pela correção de seus administrados e magistrados.”[24]

 

Estas algumas das lições do autor do Elogio da Loucura aos governantes de sua época. Erasmo talvez tenha conhecido o maior números de cabeças coroadas de seu tempo. Foi homem dos dois movimentos reformadores: a Renascença e a Reforma.

 

 

A Reforma conheceu duas figuras exemplares. Martin Lutero (1483-1546) e João Calvino (1506-1564). Em regiões diferentes da Europa, ambos os reformadores alteraram as concepções religiosas e políticas e lançaram os fundamentos das profundas mudanças conhecidas pela humanidade, após a suas pregações.

 

Lutero, a quem devemos a universalização da leitura e a implantação da imprensa, graças aos benefícios advindos do sacerdócio universal – o crente vai diretamente à Bíblia – tinha mensagem expressiva aos administradores para que alcançassem o bom governo.

 

É primoroso o seu sermão proferido perante o prefeito de Nuremberg, Lazaro Splengler, cumprimentando-o pela implantação de uma escola e admoestando sobre os perigos da fuga escolar:

 

“ Porque em uma cidade tão grande, em meio a seus inúmeros cidadãos, o diabo não faltará por certo em provar a sua arte e exigir a muitos que  desprezem a palavra de Deus e a escola. Pois é muito possível que muitas causas (o comércio sobretudo) impeçam de se  levar as crianças a escola e as entreguem a Mamona”.

 

O discurso de Nuremberg é uma apologia à escola em seus vários níveis. Ou seja, da escola de primeiro grau à universidade. Lutero prossegue:

 

“ (é importante) que um Conselho (municipal) honrado e prudente decida fundar e recolher grandes  meios financeiros e instalar uma escola assim bonita e assim esplendida”[25]

vejo que os homens simples se mostram contrários a mandar seus filhos a escola, retiram seus próprios filhos da escola e pensam só em comer e beber, sem querer refletirem sobre sua horrível ação …”

 

Calvino, em 1536, dedica-se a um tema extremamente rico e presente no Século XVI: o governo civil. Depois de séculos de hegemonia católica, quando se confundiam os espaços da espada e do altar, os pensadores passaram a refletir e agir sobre a importância da divisão entre os dois poderes, o temporal e o religioso.

 

 

O reformador genebrino adverte os governantes a respeito da importância do governo civil, em suas Institutas:

 

 … rejeitá-lo é uma barbárie desumana, pois que a sua necessidade entre os homens não é menor que a do pão, água, sol e ar, e sua dignidade é muito maior ainda …

 

Contudo, não se limita à admoestação. Procura demonstrar  benefícios de um governo civil. E aponta: impedir a idolatria, as blasfêmias contra o nome de Deus e contra a sua verdade e prossegue:

 

“… protege a propriedade de cada um; vigiar para que os homens façam seus negócios sem fraude nem prejuízo, em suma, que possam se expressar uma forma pública de religião entre os cristãos, e que a humanidade subsista entre os seres humanos.”

 

E, em passo seguinte, João Calvino, ainda ao buscar o bom governo, lança uma tripartição precoce e esta, ao enfatizar a importância da legalidade, dá os primeiras traços do contemporâneo Estado de Direito:

 

“Bem há três partes. A primeira é o magistrado, que é o guardião e o mantenedor das leis. A segunda é a lei, segundo a qual o magistrado exerce o seu domínio. A terceira é o povo, que deve ser governado pelas leis e obedecer o magistrado” [26]

 

 

Os princípios de João Calvino marcaram o Ocidente e ingressaram por grandes espaços geográficos da Europa continental e da Inglaterra e Escócia. Dos preceitos calvinistas, adotados por presbiterianos e calvinistas puros, originaram-se os pioneiros que ocuparam a costa leste dos Estados Unidos.

 

 

Após a presença dos reformadores na História, os acontecimentos políticos europeus dividiram-se entre defensores do absolutismo e figuras que lutavam por abertura para a liberdade.

 

O período do absolutismo conheceu pensadores que ensinavam como conviver nas cortes. Muitos deles expressavam bajulações aos poderosos e comumente exaltavam seus traços mais marcantes.

 

São muitos os chamados moralistas clássicos. Tomar-se-á alguns posteriores a época dos reformadores. Entre estes, é relevante a figura do Cardinale Mazzarino ou, em português, Cardeal Julius Mazarin (1602-1661).

 

Uma personagem típica das cortes européias da época. O seu livro, lançado em em Colônia, sobre o título de “Breviarium Politicorum secundum rubricas Mazarinicas” é considerado um tratado do cinismo e das formas insidiosas de convívio humano. Há quem o considere uma “espécie diabólica.”[27]

 

As lições de Mazzarino se colocam para governantes e governados e se caracterizam mais como um manual de sobrevivência nas cortes. Há, contudo, em seu contexto, lições para um administrador público e, entre estas, cabe a leitura da seguinte propositura:

 

“Cuida para adular o povo de prestar contas de teus atos, mas somente depois de tomados, a fim de que ninguém resolva contesta tuas decisões”[28]

 

Apesar de arrolado entre os moralistas, certamente a palavra aqui tomada sobre o contexto de moral como estudo dos costumes, Mazzarino é figura considerada amoral.

 

Em área limítrofe a Mazzarino, coloca-se o jesuíta Baltaser Gracián (1635-1658). Foi soldado e por sua luta na batalha de Lérida  é considerado o “pai da vitória.”[29]

 

Lição exemplar de Gracián aos administradores em busca de um bom governo se encontra no versículo 53 de seu Oráculo Manual e Arte de Prudência[30]:

 

“Nunca perder a compostura – Um ponto importante da prudência: nunca desarvorar-se. Provam-no muitas pessoas de alta posição, pois que tem magnanimidade dificilmente se abala. As paixões são os fluidos da alma e exceder-se nelas prejudica sempre a prudência. E se o mal transbordar pela boca, corre perigo a reputação. Seja, pois, de tal forma senhor de si e tão grande que nem na maior ventura nem na maior adversidade possa alguém censurá-lo por agitado, e sim admirá-lo por superior”[31

 

Os chamados moralistas são muitos. Distribuíssem por longo período, que vai do quinhentos até o setecentos. Além dos citados expressamente, pode-se ainda registrar, nesta categoria de pensadores,  Guicciardini, Castiglione, Guevara, Bacon, Garzoni, Burton, Quevedo, Descartes , Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère.

 

Nos tempos modernos, a Ilustração francesa elaborou obras marcantes para a busca do bom governo. Após viagem a Inglaterra e tomar conhecimento  da sabedoria árabe, Montesquieu, Barão de la Brede et de Montesquieu (1689-1755) escreve seus O Espirito das Leis (1748), obra extremamente divulgada e conhecida.

 

Jean Jacques Rousseau (1712-1778) sempre conviveu em sua obra com  dilemas entre  natureza e  civilização ou sentimento e razão. Rousseau se mostra mal aparelhado para conviver com “a malícia, o egoísmo e o engano, que se escondem debaixo da máscara de benevolência e cortesia que exibem os homens”. Estes condicionantes humanas impedem o exercício de um bom governo.[32]

 

Rousseau formulou, assim refletindo, a tese psicoanalista do “descontentamento da civilização” , este sentimento com que todos convivem contemporaneamente.

 

O conselho de genebrino para se alcançar um bom governo, concedido após exercícios de geometria, é simples e a um tempo preocupante:

 

Portanto, o governo, para ser bom, deve ser relativamente forte na medida em que o povo é mais numeroso”[33]

 

O inesquecível François Marie Arouet,  Voltaire (1694-1778),  deve ser recordado, quando são arrolados pensadores que buscaram influir na elaboração de um bom governo. É controvertido este pensador. Nobre, sempre conviveu nas cortes, entre as quais de Frederico da Prussia, mas com olhos de ver a realidade.

 

Após ler a clássica obra de BeccariaDos delitos e das penas -, Voltaire se agita com a presença de filhos de mães solteiras e dá conselho para bom governo:

 

A caridade, neste país, não construiu ainda mais asilos onde as crianças expostas possam ser tratadas. Onde falta a caridade (hoje, responsabilidade social) a lei sempre é cruel. Seria melhor prevenir desgraças como estas, que são usuais, que limitar-se a punir. A verdadeira justiça consiste em impedir os delitos e não em condenar à morte a quem é vítima da fraqueza do próprio sexo, quando é evidente que a sua culpa não se encontra acompanhada de malícia, e que esta causou dor ao seu coração”[34]

Assegurem, o quanto puderem, uma via de saída a quem está tentado a agir mal, e tereis menos a punir”

 

Até aqui, deparamo-nos ponderavelmente com pensamento europeu em busca do bom governo. Trata-se de deformação própria de nossa cultura nativa, de origem eurocêntrica.

 

Deve-se, contudo, para se captar os traços de um bom governo, debruçar sobre o pensamento dos Pais Fundadores dos Estados Unidos da América. Foram personalidades de excepcional capacidade de captar a realidade e elaborar normas factíveis.

 

Há uma nota “realística” na vida pública norte-americana. Fala-se que nos Estados Unidos, ao contrário do que ocorre na Europa, se presta mais atenção no modo concreto de aplicar um princípio que ao princípio em si.[35]

 

Com este realismo, os autores do  O Federalista, considerado por Norberto Bobbio “il liber sapientiae dello Stato federale”, apontaram os princípios de um bom governo.

 

Alexander Hamilton, no artigo de número setenta, é taxativo:

 

“a energia do executivo representa uma característica principal de um bom governo. Essa é a qualidade essencial para proteger a comunidade dos ataques externos; e ainda essencial para garantir uma constante e uniforme aplicação das leis; proteger a propriedade contra os complos tirânicos que obstruem a todo momento o processo regular da justiça; a salvaguardar a liberdade contra as maquinações e os ataques das ambições, das facções e da anarquia”

 

Alexander Hamilton (1755?-1804), John Jay (1745-1829) e James Madison (1751-1836) foram combatentes notáveis do federalismo e contavam com preparo intelectual diferenciado. Madison, jovem constituinte, no artigo X, aponta com ênfase a condições para um bom governo:

 

“Colocar o bem público e os direitos privados a salvo dos perigos de uma facção e preservar sempre o espírito e a forma do governo popular, é o maior fim de nossos debates.”

 

Estes são produtos diretos da formação dos Estados Unidos da América e da própria Revolução Americana. Esta sempre contou como pensamento dominante os direitos naturais e constitucionais, o contrato social e o direito à resistência.

 

Há frases populares do período revolucionário norte-americano que merecem ser registradas pela flagrante atualidade. Diziam os sulistas, na busca de um bom governo:

 

“Quanto menos governo, melhor”[36]

 

Certamente, a figura de Abraham Lincoln (1809-1865), em seu discurso da casa dividida, proferido após seu rompimento com o presidente James Buchanan, demonstra como o bom governante é preciso nas colocações, ao contrário do que parece a muitos dos moralistas citados:

 

“ Em minha opinião, não cessará enquanto não se tiver alcançado e transposto uma crise. “Uma casa dividida contra si mesmo não subsistirá. Acredito que esse governo, meio escravocrata e meio livre, não poderá durar para sempre. Não espero que a União se dissolva; não espero que a casa caia; mas espero que deixe de ser dividida.”[37]

 

Correu-se inúmeras realidades. Constatou-se que a busca de um bom governo passou por mentes esclarecidas e por cérebros maledicentes. Houve, contudo, uma procura incessante.

 

Na contemporaneidade, torna-se preocupante a qualificação de bom governo. Os  meios de comunicação eletrônica, de natureza instantânea, alteraram os costumes e feriram, muitas vezes valores éticos.

 

Parece ser bom governo, nos tempos que correm, aquele que melhor se apresenta nos vídeos. As palavras pouco importam. Vale a imagem. Ainda, assim, porém, pode-se afirmar que a Constituição de 1988 apontou com exatidão o que se pode considerar um bom governo e quais as regras que devem ser seguidas para se atingir este objetivo maior.

 

O artigo 37 do Documento Constitucional é expresso em afirmar que a boa administração deve obedecer osprincípios da

 

legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e  eficiência.   

 

A cidadania que almeja por um bom governo deve estar atenta e exigir que estes princípios se encontrem presentes nos atos dos administradores e, utilizar, sempre que isto não acontecer, as garantias constitucionais colocadas a sua disposição: ação civil pública, ação popular e o direito de petição.

 

A omissão, quanto ao agir a procura do bom governo, é ato que lesa a individualidade e a comunidade, a um só tempo. Agir em defesa da coisa pública é exercer a cidadania, suporte para um bom governo.

 

A reflexão concretizada, a partir dos inúmeros autores arrolados, permite um estado de atenuado ceticismo. No Estado de Direito, obedecidos os princípios constitucionais expressos, pode-se atingir um bom governo. Caso contrário, atendo-se somente ao governo das pessoas, volta-se ao pessimismo. O governo das pessoas é suportado na ambição e esta

 

“é uma droga que transforma que se entrega a ela em demente em potencial … um êxtase sórdido – nem em si mesmo nem em nenhum outro permanecerá estranho aos malefícios e aos benefícios do Poder, inferno tônico, síntese de veneno e panacéia.”[38]

 

Cláudio Lembo

 

Professor de Direito Constitucional

 

 

[1] O Estado de Direito – História, teoria, crítica – Pietro Costa e Danilo Zolo (orgs) – Martins Fontes – São Paulo – 2006 – pg. 899

[2] idem, idem – pg. 900

[3] idem – idem – pg. 904

[4] Documento elaborada pela Biblioteca di Via Senato – Milano

[5] Ibn Jaldún – Introducción a la historia universal  (Al-Muqaddimah) – Fondo de Cultura Económico – México  – 1997

[6] Elis Trabulse – in Estudio Preliminar a obra de Ibn Jaldú, acima citada, pg. 21

[7] Ibn Jaldún – livro citado – pgs. 508/509

[8] Giacomo Leopardi – Il Manuale di Epitteto – Oscar Mondadori – Milano – 1994

[9] A República

[10]  Platon  – El Politico– Centro de Estudos Constitucionais – Madrid – 1981 – pg. 91

[11] Cícero – Da República – Ediouro – Rio de Janeiro –  5ª edição – pg. 106

[12] Provérbios (Mishlê), 2:9 – Bíblia Hebraica – Sêfer – São Paulo – 2006 – 2:9

[13] idem, idem  21:21

[14] Compêndio da Doutrina Social da Igreja – Paulinas – São Paulo – 2005 – texto transcrito, em livre versão, da contra-capa. Na capa, há reprodução do afresco.

[15] Edgar Royston Pike – Diccionario de Religiones – Fondo de Cultura Económica – México – 201 – verbete: Imitación de Cristo

[16] idem, idem

[17] Tomás de Kempis – Imitação de Cristo – Edições Paulinas – São Paulo – 1985 – pg. 311

[18] Hale, J.R. _ Dicionário do Renascimento Italiano – Jaorge Zahar Editor – Rio de Janeiro – sem data – verbete: Bruno, Giordano

[19] Jacob Burckhardt – A Cultura do Renascimento na Itália – Companhias das Letras – São Paulo – 1990 – pg. 111

[20]

[21] Nicollò Macchiavelli – O Principe – Capítulo XVII – Ediouro – Rio de Janeiro  – 1982

[22] idem  -Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio – Editora  UNB – Brasília – 1979 –pg. 207

[23] Roland H. Baintos – Erasmo da Cristandade – Fundação Calouste Gulbenkian – Lisboa – 1988 – pg.136 e 137

[24] Erasmo da Rotterdam – Elogio della Pazzia – Mondadori – Milano – 1964 – pg.151

[25] Lutero – Liedr e prose – Mondadori – Milano – 1983 – pg. 173/174 – versão livre

[26] João Calvino – As Institutas – Edição Cultura Cristã – São Paulo  2006 pg.147/148

[27] Giovanni Macchia – La vie del Potere – introdução ao Breviário dei Politici, seconde il Cardinale Mazzarino – Rizzoli – Milano – 1981 – pg.VIII

[28]

[29] Giovanni Macchia – I moralisti classici – Adelphi – Milano – 1988 – pg. 260

[30] Baltasar Gracián – Oráculo Manual e Arte de Prudência – Ediouro – Rio de Janeiro – s/data

[31] idem,idem – pg. 43

[32] J.P. Mayer – Trayectoria del Pensamento Politico – Fondo de Cultura Económica – México – 1985 – pg.156/157

[33] J.-J. Rousseau – O contrato social – Princípios do direito político – Martins Fontes – São Paulo – 2006 – pg.74

[34] Edward N. Luttwak e º Il Libro della Libertà – Mondadori – Milano – 2000 – pg. 114

[35] Kecskemeti – El pensamento político norteamericano – in Trayectoria del pensamento político – já citado – pg.299

[36] idem, idem, pg. 267

[37] Harold C. Syrett – Documentos Históricos dos Estados Unidos – Cultrix – São Paulo – 1988 – pg. 200

[38] Cioran – História e Utopia – Rocco – Rio de Janeiro – 1994 – pg. 53

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