INACEITÁVEL ESQUECIMENTO


Os dias finais de cada ano levam a reflexões. Busca-se alcançar os acontecimentos futuros. Conduzem a meditações sobre tempos passados. Estas últimas surgem em nossas mentes pelos mais diferentes motivos.

Uma cena com contornos já observados. Um encontro causal com pessoa de há muito distante. Um livro com registros capazes de estimular a memória e trazê-la ao presente.

Um livro – Hospedaria de Imigrantes de São Paulo* – foi o condutor do encontro de tempos passados com o presente. É pequeno, mas registra números e acontecimentos relativos à Grande Imigração.

Corriam os últimos anos do Século XIX. A libertação da mão de obra servil, apesar de esperada, levou os proprietários de terra – especialmente de São Paulo – a uma situação inusitada.

As grandes plantações de café exigiam mão de obra intensiva. As colheitas pendentes não podiam permanecer nos cafezais. Novos recursos humanos eram exigidos.

A opção primordial recaiu sobre os excedentes populacionais europeus. Instituíram-se companhias para facilitar a imigração. Os governos passaram a subsidiar a vinda da Europa de camponeses sem terra.

Foram milhões. Conduzidos na terceira classe de navios que partiam dos portos de Genova e de Nápoles, quando italianos, chegavam às terras americanas. Aqui, eram conduzidos às hospedarias de imigrantes.

Realizada a triagem, onde era constatado o estado de saúde de cada um, iniciava-se a segunda longa viagem. Em vagões ferroviários, dava-se o encaminhamento para os mais remotos rincões.

Quando chegavam ao destino, os imigrantes eram hospedados em casas primitivas – muitas vezes velhas senzalas – e confinados em “colônias”, distantes das cidades, isoladas de tudo e de todos.

Carência plena. Ausentes os serviços religiosos. Não havia padres. Ninguém falava a língua dos recém-chegados. Os costumes e usos milenares deviam ser esquecidos.

Nada de vinho. O queijo tradicional substituído pela farinha de mandioca. As doenças tropicais – o bicho de pé – exterminava resistências. Levava à morte muitos desterrados.

As comunicações com as terras de origem estancadas. Na maioria das vezes, nunca mais se estabeleceram. Romperam-se laços familiares. Violaram-se hábitos. Feriram-se tradições.

Estas mulheres e homens produziram saga ainda a merecer mais profundos estudos. Muitos voltaram aos países de onde saíram. Outros se deslocaram para a Argentina e Estados Unidos.

Aqueles que sobreviveram e se mantiveram em terras tropicais produziram umas das mais amargas e criativas aventuras humanas. Romperam duras amarras impostas pelos seus aproveitadores.

Conseguiram – os que sobreviveram – erguer cidades. Alterar costumes. Conceber novas formas de edificações. Elaborar novos hábitos alimentares. Escolarizar seus descendentes.

Hoje, os tataranetos daqueles fortes imigrantes já não se comovem com a saga de seus antepassados. Os sofrimentos remotos não importam. Não atingem os que levam os nomes daquelas anônimas personagens.

Os governantes – dos países exportadores e importadores – procuram esquecer a nódoa da Grande Imigração. Lá, os proprietários de terras preocupados com as revoltas sociais. Com as revoluções liberais.

Aqui, os proprietários de terras na busca gananciosa do aproveitamento do trabalho dos desterrados. Nas duas pontas, o egoísmo humano desprezando o sofrimento dos mais fracos.

A Hospedaria de Imigrantes de São Paulo testemunhou este drama. Na Grande Imigração recebeu italianos, espanhóis, portugueses. Prosseguiu recolhendo lituanos, poloneses, alemães e eslavos.

Finalizou sua triste sina com a chegada de desprotegidos brasileiros do nordeste. Hoje é museu. As suas paredes agasalham lágrimas de mulheres e crianças sem destino. A perplexidade de homens dobrados pelo infortúnio.

Alguns sobreviveram. Foram capazes de romper todas as amarras. Lutaram por princípios libertários. Conduziram grandes movimentos sociais. Estabeleceram as bases de uma convivência mais fraterna.

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* Hospedaria de Imigrantes de São Paulo/ Odair da Cruz Paiva, Soraya Moura – São Paulo: Paz e Terra, 2008

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