FICHA LIMPA E OUTRAS TRAPALHADAS ELEITORAIS


Neste momento pós carnavalesco, nada melhor do que começar o ano – e o ano aqui só começa depois que o cortejo dos exóticos bonecos pernumbacanos passa – com a palpitante discussão em torno das eleições municipais de 2012.

 

Candidatos, partidos, marqueteiros e até a própria Justiça Eleitoral começam a enfrentar a espinhosa, porém eletrizante, caminhada na direção das urnas. E estas são implacáveis. O eleitorado brasileiro, um contingente povoado em mais de 50% por mulheres, detêm plena consciência do valor e peso da sua participação política ao eleger seus representantes, no exercício da cidadania. Já assumiu o seu papel de cidadão-eleitor com poder de veto. A cidadania brasileira se consolidando no século XXI.

 

Nesse início de percurso, dois são os aspectos que demandam desde já a atenção e o exame dos analistas. O primeiro toca de perto a expectativa do cidadão-eleitor de ver afastados deste cenário de luta pelo poder os políticos que deveriam, a rigor, frequentar as páginas policiais e não se apresentar em cena eleitoral buscando captar o voto do eleitor pelo clássico método do aliciamento. Trata-se da polêmica lei “ficha limpa” – Lei complementar federal no.  135/2010, texto que, editado pelo Congresso Nacional sob pressão da opinião pública, foi longamente analisado pelo Supremo Tribunal Federal até que, finalmente, em sessão de 16 de fevereiro, de 2012, decidiram os ministros, por votação de 7 a 4, confirmar sua constitucionalidade.

 

Referida lei foi objeto de perplexidade logo da sua edição. Impactou o mundo político – até por ter sido promulgada em pleno processo eleitoral relativo ao pleito de 2010 – e tumultuou o Judiciário com uma avalanche de impugnações. Mais que isto, inutilizou de imediato cerca de 8.700.000 votos atribuídos aos políticos de candidatura questionada, quadro reformulado pela posição do Supremo Tribunal Federal de não admitir a aplicação do texto às eleições de 2010, em homenagem ao princípio da anualidade e anterioridade proclamado pelo art. 16 da Constituição Federal. Em sessão de 23 de março de 2011, por votação de 6 a 5, a denominada lei “ficha limpa” teve sua eficácia postergada, promovendo um intenso movimento de troca de cadeira, porquanto os que tinham sido impedidos de assumir seus postos afastaram os suplentes empossados e retornaram à vida pública.

 

Em verdade, o diploma opera inserindo nuanças de maior severidade às hipóteses de inelegibilidade preconizadas pela Lei complementar federal nº 64/90. Aumenta os prazos de inelegibilidade, basicamente dos casos de inelegibilidade absoluta (que não pode ser afastada pela mera desincompatibilização), equipara ao trânsito em julgado, para fins de criação da inelegibilidade, decisão judicial proferida por órgão colegiado, ou seja, a condenação proferida pelos Tribunais, ainda que pendente de recurso, e expande o catálogo das causas de inelegibilidade.

 

No tocante ao período de vedação de candidatura, o texto traz o prazo de 8 anos, contado a partir da data da condenação pelo Tribunal, para quase todas as hipóteses. Estas, a seu turno, são alargadas e vem dotadas de detalhamento aprofundado quanto ao tipo de conduta sancionada, a exemplo da nova redação dada à alínea “e”, inciso I, do art. 1º, da Lei nº 64/90, que agora traz 10 diferentes tipos de crimes gerando inelegibilidade (1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;  2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; 3. contra o meio ambiente e a saúde pública; 4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;  5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; 6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; 7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; 8. de redução à condição análoga à de escravo; 9. contra a vida e a dignidade sexual; e 10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando), sendo que, neste segmento, o prazo começa a fluir quando cumprida a pena. Isto é: só depois de transcorridos os 8 anos do cumprimento da sanção imposta, o óbice à elegibilidade é removido.

 

Mais ainda, a situação de contas rejeitadas, prevista como figura de inelegibilidade na alínea “g”, do inciso I, do art. 1º, da Lei nº 64/90, de sua parte foi objeto de maior rigor no tratamento conferido pela lei “ficha limpa” e, agora, não basta encontrar-se a matéria sob a mera apreciação do Poder Judiciário, exigindo-se para a superação da inelegibilidade a sua suspensão ou anulação judicial.

 

Aliás, interessante a brecha aberta pelo legislador que reconhece a possibilidade de afastar esses obstáculos à candidatura mediante suspensão do efeito da decisão condenatória obtida em juízo. É o que se depreende da leitura do art. 26-C, um acréscimo efetuado à Lei complementar nº 64/90 pela nova lei “ficha limpa”, suavizando sua drasticidade.

 

Há outros pontos merecedores de destaque nas inovações que emergem do novo figurino da candidatura. Assim, nos moldes estabelecidos pela Lei complementar nº 135/2010, a renúncia ao cargo, após a apresentação da representação apontando a presença de conduta incriminatória, não mais assume conotação de condição impeditiva de atribuição de inelegibilidade. Esta passa a se afigurar aplicável independentemente da eventual renúncia. No entanto, se a renúncia de parlamentar ou de chefes dos Executivos (alínea “k”, inciso I, art. 1º) ocorrer para fins de desincompatibilização para concorrer a cargo eletivo ou para assumir outro mandato, não se aplicará a inelegibilidade, salvo se comprovada fraude, consoante registra o atual § 5º da aludida lei de inelegibilidades.

 

De se registrar, demais disso, que o inovador diploma produzirá um quadro de candidaturas extremamente fluído e instável. Isto porque a decisão proferida em segunda instância, por órgãos colegiados do Judiciário, apanha e incide sobre o candidato no estágio em que se encontrar a respectiva candidatura. Assim, suponha-se que no momento da convenção e do registro da candidatura haja pendência decorrente de mera sentença de primeiro grau; em tramitando recurso dessa decisão, o candidato ainda é elegível e conquista a legenda. Porém, em plena campanha, esta candidatura pode sofrer cancelamento por força do advento de acórdão condenatório emanado de órgão colegiado, o Tribunal. O candidato é retirado da lista, perdendo a legenda. Em seguida, porém, este mesmo candidato vem a obter, por via recursal, suspensão da decisão condenatória. Por mais uma vez, há modificação do quadro das candidaturas, reincluindo-se na lista o candidato beneficiado com a suspensão da decisão condenatória. Este movimento de entrada e saída de candidatos nas listas oferecidas ao eleitor poderá se apresentar infindável. E a oscilação fatalmente alcançará, mais que candidato, o próprio mandato político e seu titular.

 

Muitos, decerto, os tópicos que continuarão ao longo da campanha de 2012 a produzir nevralgias no panorama político. Neste escaninho, certamente se deparará o analista com a recomendação presente no inciso XVI, inserido no art. 22, da Lei complementar nº 64/90, por força das inovações da lei “ficha limpa”. Esse orienta o aplicador da lei, para, visando a configuração do ato abusivo, verificar “apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”. Construído em textura imprecisa e indefinida, parece-nos que, em primeiro passo, deveria se definir o exato conteúdo da expressão “gravidade das circunstâncias”, sob pena de deixar ao sabor de cada julgador, de sua ideologia e simpatias políticas, o poder de retirar o status de elegibilidade dos postulantes a cargos eletivos, o seu direito fundamental de atuar em cena política no exercício do sufrágio passivo. Isto seria absurdo.

 

As manchetes, contudo, não se limitam e não permanecerão restritas a discutir o tema “ficha limpa”. Quais das tradicionais figuras políticas estará sendo fisgada pelo implacável rigor da lei e severidade da Justiça?  Esta questão revela um debate que percorrerá os próximos seis meses, enriquecendo as manchetes dos jornais e produzindo a expansão extraordinária do número de processos judiciais em tramitação.

 

Agudo e também novidadeiro na plataforma eleitoral, no entanto, será o tratamento a contemplar um novo partido na arena da política. Diante do macroprincípio constitucional do pluralismo político, que implica e impõe garantias de liberdade para conquistar os eleitores e difundir a sua proposta programática em uma plataforma eleitoral que assegure equilíbrio ao jogo de conquista do poder político, o interesse do eleitor deverá se voltar à apreciação das medidas adotadas em relação a esta recém criada agramiação partidária, robusta pela sua própria formação genética, de densidade eleitoral em razão da não desprezível bagagem de votos de seus membros.

 

De alto risco para os partidos já consolidados, surpreendidos com a intromissão da estreante figura que passa a apresentar uma alternativa a mais e opção por políticas públicas diferenciadas a um corpo eleitoral jovem, na busca de novos produtos e de novas propostas governamentais, o PSD já começa a enfrentar o antagonismo dos grupos hoje governantes, com medidas destinadas a lhe obstar presença no palco eleitoral de 2012.

 

Pois bem, o cenário eleitoral doméstico, brasileiro, tem oferecido reduzida mobilidade nos últimos 20 anos. De fato, já houve uma florescência de partidos, dos mais variados quanto à cor política, ideologia e grandeza, um quadro que chegou a contar com cerca de 130 agremiações. Desse total, ao longo dos anos, no entanto, 53 partidos foram extintos e 34 sequer lograram o registro provisório junto à Justiça Eleitoral. O último momento deste período de explosão partidária posiciona-se no ano de 1989, quando, diante do movimento dos grandes partidos no sentido de impedir o ingresso de novos “nanicos”, presenciou-se ao registro de 22 siglas.

 

 

Hoje se convive com 29 partidos, sendo 8 (sete) de grande e médio porte e o restante inseridos sob o rótulo denanicos. Contudo, mister é o registro de que este quadro de co-habitação de robustas e frágeis agremiações partidárias restou consagrado por memorável decisão do Tribunal Superior Eleitoral, em 7 de dezembro de 2006, ao assegurar sobrevida aos partidos de reduzida potência eleitoral, em homenagem e atendimento ao pluralismo político, princípio estruturante da democracia entre nós praticada. (Sobre a matéria, ver ADI 1351  e  ADI 1354, ambas de 1995)

 

 

Ora, criar obstáculos e reduzir o espaço de exposição das idéias e proposições de um novo partido não se coaduna com o comando de uma comunidade plural que reclama e necessita de locus para participação política e agride a própria idéia de sufrágio universal. Esta encerra a exigência de assegurar ao corpo eleitoral um amplo leque de opções eleitorais. É a plataforma do direito de sufrágio que não admite restrições – em nenhum dos seus polos – não razoáveis, excessivas e exorbitantes. E o pluralismo importa e requer requisitos que autorizem às mais diversas forças políticas, presentes na comunidade social, equilibradas condições de disputar o voto e a confiança do eleitorado.

 

Nesta esteira a inutilidade e, mais que isso, a inadequação ao pluralismo das discussões que percorrem as manchetes dos nossos jornais questionando tempo de antena, participação no fundo partidário, horário de propaganda eleitoral e, até mesmo, participação nas comissões legislativas. O novo partido, de origem parlamentar, uma das mais clássicas e tradicionais técnicas de formação, inicia sua vida com a plenitude da bagagem eleitoral de seus membros. Ao assumirem a nova filiação, estes trazem consigo o mandato e seus complementos. Nada pode restar retido. Até porque a própria Resolução que regulamenta o tema fidelidade partidária não atinge o detentor de mandato político que é fundador de nova agremiação. Mais uma vez a norma robustecendo e sustentando a imposição de se preservar e de se incentivar o pluralismo.

 

Fato é que a sociedade contemporânea mudou e a complexidade que hoje a qualifica importa uma mutação até mesmo quanto à idéia de povo. Este não mais deve ser compreendido como um bloco concentrado e monocolor, mas como uma série – uma soma – de interesses e situações específicas e em constante evolução. Há, pois, uma profunda alteração da expectativa em relação a uma “boa representação política”. Para tanto,impõe-se a constante interface entre o poder e a sociedade.

 

Fevereiro de 2012.

 

Monica Herman Caggiano, Professora Associada do Departamento de Direito do Estado, da Universidade de São Paulo. Livre-Docente em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito/USP. Presidente da Comissão de Pós-Graduação da Faculdade de Direito/USP. Professora Titular de Direito Constitucional e Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Assessora Especial do Governador do Estado de São Paulo (2006). Procuradora Geral do Município de São Paulo (1995-1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1966). Procuradora do Município de São Paulo (1972-1996).

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