ÉTICA, POLÍTICA E IMPROBIDADE.


A REALIDADE DEMOCRÁTICA DO SÉCULO XXI.

 

Parece lugar comum. Mas, em pleno século XXI o tema atinente à ética e à moral na política retorna à cena com acentuada intensidade. É verdade que isto em todas as áreas de convivência no âmbito das comunidades sociais. Na plataforma da política, porém, os malfeitos se multiplicam a uma velocidade de nave espacial. Nos domínios brasileiros, os casos do “mensalão” e “lava-jato” prendem a atenção da cidadania que assiste – como qualquer espectador – a um espetáculo ultrajante.

No espaço dos direitos fundamentais, esfera própria do exercício da cidadania, a trajetória evolutiva  de mais de duzentos e quarenta anos do impacto das primeiras Declarações de Direitos[1] e apesar dos inúmeros documentos internacionais[2] que vem denotar a especial e intensa atenção que o mundo moderno dispensa à temática, paradoxalmente, também pouco se avançou em termos fáticos. A imprensa e a mídia se encarregam de denunciar profundos pontos de vulnerabilidade: discriminação racial, discriminação da mulher, discriminação religiosa, a educação contemplando poucos – uma elite, ondas de um nazismo recorrente, violações à intimidade, um fundamentalismo a preordenar o emprego da religião como arma e, suportado por um tom de autodefesa, o “remake” dos tribunais de exceção à moda inquisitorial[3], constituem tópicos de elevado grau nevrálgico nessa área.

Enfim, na aldeia global a que se referem JEREMY BRECHER e TIM COSTELLO[4], que descortina grupos e forças sociais em contínua competição, há um mundo atingido pelo processo de globalização que conduz a novos comportamentos, a um recrudescimento de atitudes e à imposição de um outro tratamento desse velho e sempre presente problema.

Revela-se, de fato, um mundo dominado por outras fórmulas éticas, por um outro conceito de moral. A busca e o desenvolvimento de novos instrumentos de atendimento das demandas democráticas correspondem, hoje, a elementos carentes de conteúdo. Cada um lhe oferece a própria interpretação e ao que tudo indica, a plataforma da política acabou sendo invadida por um fenômeno do acervo junguiano[5] conhecido como a atuação do inconsciente coletivo que, no caso, repousa sobre a ideia de levar vantagem.

Em um cenário em que a humanização dos indivíduos se retrai, sob o domínio dos fenômenos materialista e do consumismo, emerge a figura da ética progressista, construída sobre o princípio da  sobrevivência, que autoriza o indivíduo a se utilizar dos meios de comunicação e da falsa filantropia para demonstrar à coletividade o seu alinhamento às regras editadas pelo Poder.  Esta inovadora formulação da ética vem tratada com perspicácia por Pedro Francisco Gago Guerrero[6], que passa a indagar acerca dos efeitos desta visualização diferenciada da ética, concebida como fundamento para o humanitarianismo, notadamente quanto aos resultados da sua aplicação sobre as relações dos indivíduos na sociedade global. Uma ética que transcende e se afasta de qualquer ideia tradicional de moral. Sob o seu impacto, a ação do homem passa a se conduzir por um espírito de competição tendo por meta ser o vencedor, conquistar um pedestal de glória. “To be the winner” é expressão alçada a lema do indivíduo do século XXI guiado por esta ética destrutiva.

Exatamente nesta plataforma globalizada e reflexo direto da prática da ética progressista observa-se o alongamento e o aprofundamento do fenômeno corrupção que atinge e fragiliza a democracia brasileira.

Cabe registrar, desde já, que não se trata de fenômeno recente. A Bíblia já advertia: “Não receberás dádiva, porque a dádiva cega aos que a vêem e perverte as palavras justas” (Exodo, XXIII- 8) E ao longo da era do Império Otomano afigurava-se natural a exigência do “plokon” (presente) para se apresentar diante do sultão.

Mas, o que vem a compreender este fenômeno?  Como atua?  Quais são os resultados?

Corrupção compreende condutas moldadas pela concussão, consubstanciadas em tráfico de influências,  atuação mediante propina, presente sempre a improbidade. Envolve situações ou meios de pressão ilícita e oculta voltados para a obtenção de resultados que os procedimentos legais não garantem. E, vem praticada, via de regra, de forma camuflada, a partir de uma zona de penumbra, buscando a obtenção de vantagens pessoais ou destinadas a beneficiar o grupo.

Corrupção, de certo, abarca uma atividade à margem da lei, da ética e da moral do homem comum.

Conduta distante e distinta das expectativas do Cidadão.  

Este cidadão que, de fato, tem direito ao Bom Governo; que deve confiar nos seus governantes; que deve se sentir representado e que participa do processo decisional pelo voto, impondo aos governantes ações que se conformizem às expectativas do corpo social.

Dai porque, nas democracias, ambiente timbrado pela prevalência da Constituição e de seus fatores de limitação, coloca-se ao analista, de imediato, o problema da responsabilidade pelo exercício do poder. Abandonado o princípio da irresponsabilidade do rei, o panorama democrático vem preordenado pelos standards da democracia plasmada no constitucionalismo. Um novo arranjo de organização do poder que repousa sobre a plataforma da representação política e impõe responsabilidade quanto às decisões. Sob o comando constitucional “Toda pessoa investida de um mandato eletivo, a lhe conferir a qualidade de órgão com poderes públicos é obrigada a prestar contas de seus atos e de assumir as consequências.”[7]A responsabilidade do poder revela-se elemento estruturante dos governos constitucionais – em especial, das democracias.

Por outro turno, convém frisar que a própria representação política – principal receita operatória das democracias – importa em responsabilidade dos representantes. Estes – representantes/governantes – devem responder por suas ações e políticas praticadas perante os representados/governados: o cidadão. No cenário democrático, constitucional, aos governos impõe-se: (1) a produção responsável das decisões políticas; (2) condutas responsáveis.

Para demonstrar esta relação de responsabilidade que se estabelece entre governantes e governados, Robert Dahl desenvolve a tese conhecida como responsiveness que se assenta exatamente na: (1) conformização da decisão política às expectativas da comunidade; (2) capacidade de resposta adequada, por parte do Poder político, às demandas dos cidadãos[8].

Nessa trilha, ainda, o desenvolvimento da teoria – também de origem americana – que subordina os governos à exigência de accountability, a envolver o dever de prestar contas à comunidade social quanto às políticas públicas produzidas e aplicadas.

É verdade que a complexidade dos fenômenos sociais e políticos – um território em contínua mutação sob o impacto de transformações sociais, do fortalecimento dos partidos, do desenvolvimento, aperfeiçoamento técnico e robustecimento da máquina estatal, consolidando um quadro tecnocrata de crescente relevância e altamente influente – vem produzindo um inevitável desgaste e um agudo grau de senilidade ao padrão democrático.

Se no século passado, ao se alcançar o sufrágio universal, havia a perspectiva de consolidação da democracia, hoje a cidadania não mais se satisfaz em escolher os representantes/governantes, jogando o seu voto nas urnas. Exige maior espaço de participação política e se ressente das falhas e defeitos que a representação vem apresentando.

Pesquisa realizada em 2009 retrata um grau surpreendente de reprovação no que tange ao parlamentares/representantes. 40% mostram descontentamento e apenas 15% consideram o desempenho bom e regular.[9]  Aliás este descaso com o político transparece com clareza do incluso quadro que oferece uma visão negativa dos representantes/governantes, um sentimento de desconfiança que o cidadão brasileiro lhe dedica:

Postura do cidadão diante dos seus representantes

Nota média atribuída à atuação dos deputados e senadores brasileiros (0-10)

Þ 3,9

Em que medida os deputados e senadores brasileiros trabalham

MuitoÞ02%; O suficiente Þ 10%

PoucoÞ 84%; Não sabe Þ 04%

Os Deputados e Senadores:

Representam e defendem os interesses da sociedade Þ 03%

Representam e defendem os interesses dos grupos políticos Þ 31%

Representam e defendem os próprios interesses Þ 63%

O nome do Presidente da Câmara dos Deputados

Não sabe Þ 86%

Sabe Þ 14%

Lembra alguma medida de deputado ou senador que tenha sido relevante para a sua cidade

Sabe Þ 23%; Não conhece Þ 76%

Lembra de medida adotada por governador importante para a sua cidade

Sabe Þ 49%; Não conhece Þ 51%

A que animal associaria a imagem dos parlamentares

Cão de guarda Þ 14%; rato Þ 37%

Coruja Þ 14%; abutre Þ 28%

Características que melhor definem os parlamentares brasileiros

Honestos Þ 8%;preguiçosos Þ 31%

Dedicados Þ 04%; mentirosos Þ 49%

Insensíveis quanto à população Þ 52%

Trabalhadores Þ 07%;

Desonestos Þ 55%;

Oportunistas Þ 45%; sinceros Þ 05%

Sensíveis aos interesses da população Þ 08%

A Democracia, todavia – antiga é advertência – configura modelo político exigente. Consagra, em verdade, os contornos de uma fórmula política especialíssima, por envolver imposições e condutas especialíssimas: implica na indisponibilidade do pluralismo político e na responsabilidade do poder.

A Democracia é exigente e o é com os cidadãos, com os governantes e com as instituições. Requer condutas éticas. Reclama por instituições representativas, fortes e respeitadas. É intransigente no terreno da garantia da segurança jurídica e da confiança mútua (mutual trust) entre governo e governados.

No entanto, consagra o único modelo político apto a preservar a liberdade do ser humano convivendo na sociedade politicamente organizada, notadamente, no complexo e sofisticado panorama que o século XX desvendou e que este começo de novo século vem consolidando.

A prática da democracia constitui trilha sensível, repleta de dificuldades. É dispendiosa e intransigente com os deslizes. Reclama o esforço de todos, porque a todos beneficia.     

 

Fortaleza, 23 de setembro de 2016.

                                    

[1] Cuida-se aqui das Declarações americanas, de nítida inspiração religiosa, impregnadas pela filosofia jusnaturalista e pela tradição liberal inglesa: a) a Declaração de Direitos do Bom Povo de  Virginia, estabelecida pela Assembléia constituinte do Estado de Virginia e promulgada com o texto da Constituição, em 12 de junho de 1776; b) a Declaração de Independência dos Estados Unidos, documento que tem origem em  proposta do General Lee, em nome de Virgínia, aprovada pelo 2o Congresso Continental, recebendo na sua redação final o título de “Declaration of Independence” veio a ser aprovada na sessão de 4 de julho de 1776; c) a A Constituição dos Estados Unidos, de 1787, documento produzido pela Convenção Constitucional de Philadelphia, que abriu seus trabalhos em 25 de maio de 1787, apresentando um quorum de sete Estados, com o fim de debater e deliberar a revisão dos “Articles of Confederation”. Em 17 de setembro do mesmo ano, os delegados de doze Estados aprovaram a nova Constituição, sendo que, dos quarenta e dois presentes, trinta e nove a subscreveram.  O novo documento constitucional  conquistou eficácia em 21 de junho de 1788, quando o nono Estado norte-americano (New Hampshire), o ratificou; d) as 10 Emendas da Ratificação da Constituição dos Estados Unidos (Bill of Rights de 1790), conformam um texto que decorre de um trabalho preparado por James Madison e apresentado ao Congresso (Câmara dos Representantes), já sob o título de “Bill of Rights”, sendo aprovadas, nessa fase, doze (12) emendas que, a seguir foram encaminhadas aos Estados para fins de ratificação. Em 15 de dezembro de 1791, o Estado de Virginia ratifica o texto, mas apenas 10 das emendas  passam a integrar o texto da Constituição norte-americana, passando a Primeira emenda a ser rotulada de expressão da garantia dos “fundamental rights”, vindo ali registrada a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de opinião, a liberdade religiosa (free exercise clause) e a “establishment clause”, reconduzindo a lei às suas finalidades seculares. E mais, ainda, na França, da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Conquanto, historicamente não se afigure pioneira ao utilizar essa fórmula de documento escrito e solene para proclamar, arrolados num elenco ordenado, os direitos do homem, parece certo afirmar que o texto é o que mais reflexos produziu no mundo, operando nítida e potente influência sobre a elaboração de toda uma doutrina edificada girando em torno do tema “direitos humanos”, e, por isso, a que mais se notabilizou pela iniciativa.

[2] Tratado de Versalhes, 28.06.1919 (OIT);  Constituição soviética de 1936; Declaração Universal dos Direitos do Homem de1948; Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, Bogotá, 1948; Estatuto do Conselho da Europa, de 1949; Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1965; Pacto internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, 1966; Pacto Internacional relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; Convenção Americana Relativa aos Direitos do Homem  (Pacto de São José da Costa Rica) , de 1969; Ato Final de Helsinki, de 1975; Recomendação sobre a Educação  para a Compreensão, a Cooperação e a Paz internacionais e a Educação relativa aos Direitos Humanos e às Liberdades Fundamentais, da ONU, de 1974; Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação das Mulheres, de 1979; Convenção sobre o Direito da Criança, de 1989; Declaração Universal da Unesco sobre o genoma humano, de 1997. a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia, resultante do tratado de Nice, de 7 de dezembro de 2000.

[3] Cuida-se dos tribunais de exceção (viabilizando julgamentos sem as garantias do devido processo legal), criados pelo Presidente norte-americano, George W. Bush, destinados a julgar atos de terrorismo, em decorrência dos eventos de 11 de setembro de 2001, quando foram derrubadas as torres gêmeas conhecidas como o edifício World Trade Center, em Nova York.

[4] BRECHER, Jeremy na COSTELLO, Tim, Global Village or Global Pillage, 2a ed., Cambridge,Massachusetts, South End Press, 1998.

[5] Ver a respeito do desenvolvimento de complexo coletivo, incorporando a teoria de Carl G. Jung, Denise Ramos em trabalho publicado sob o título “Corruption. Sympton of a cultural complex in Brasil?”, onde cuida de desvendar os sintomas e a psicopatologia na vida dos indivíduos e do grupo social brasileiro.  A ideia central gira em torno da conhecida “lei de Gerson” – levar vantagem – ou a vontade de demonstrar esperteza, que conduziriam o brasileiro a se inserir no mundo da corrupção, quer ativa quer passivamente.

[6] GUERRERO, Pedro Francisco Gago, La ética Progressista. El universalismo humanitário como via mecanisista para componer la unidad del gênero humano, Madrid, Espanha, Difusión Jurídica, 2011. ISBN 978-84-15150-16-9.

[7]AVRIL, Pierre. Pouvoir et responsabilité. In: LE POUVOIR: Mélanges offerts à Georges Burdeau. Paris: LGDJ, 1977. p. 23.

[8]DAHL, Robert Alan. Polyarchy: participation and opposition. 4. ed. London: Yale University Press, 1973. 1973.

[9] Fonte: Folha on line, de 26 de dezembro de 2009.

print