Revista CEPES
América desconhecida


Equador, a República do Sagrado Coração de Jesus*

 

O desconhecimento das realidades jurídicas da América Latina é expressivo.

 

Muitos se referem aos países do Continente como regiões exóticas e sem contornos definidos.

 

Grande equívoco.

 

Cada país latino-americano conta com peculiaridades locais e próprias tradições.

 

Cultura presente, no maior espaço do Continente, é o passado incaico.

 

O Império Inca se estendeu por extenso território.

 

Compreendia os atuais estados nacionais do Peru, Bolívia, Equador, parte do Chile, Colômbia e Argentina.

 

Era titular de cultura própria, altamente refinada.

 

Os incas foram titulares de sociedade que desconheceu escassez alimentar.

 

Notável.

 

Os historiadores referem-se ao fato com perplexidade.

 

No interior do Império Inca, graças a perfeito sistema de armazenamento e distribuição, nunca faltaram alimentos.

 

A agricultura se desenvolvia como atividade coletiva.

 

Realizava-se por intermédio de grupos familiares.

 

Aponta-se os incas como titulares de uma sociedade regimental, burocrática.

 

Formavam, segundo observador, sociedade de homens-formigas.

 

Com o flagelo infringido a esta civilização pelos conquistadores espanhóis, ruíram muitos traços do avançado coletivo precolombiano.

 

Restou a tristeza própria dos incas.

 

Há, contudo, documentos vivos desta extraordinária civilização.

 

Não conheceu a palavra escrita.

 

Ergueu, contudo, monumentos urbanos impressionantes:

 

Machu Picchu ou Sacsahuamán

 

e a joia da serra peruana, Cusco.

 

Muito do cotidiano dos incas e de sua cultura chegou até a contemporaneidade.

 

Deu-se graças a encantadora obra do Inca Garcilaso de la Vega, aparecida em 1609.

 

Esta América Latina, herdeira de preciosas heranças ancestrais, conheceu conflitos bélicos, quando da independência política.

 

As lutas deram origem à múltiplas repúblicas.

 

Grande a influência do Constitucionalismo francês e norte-americano, no nascimento dos novos estados.

 

Os documentos constitucionais, elaborados pelos segmentos europeizados, jamais encontraram legitimidade.

 

Documentos meramente formais.

 

Faltava-lhes vinculação efetiva com a maioria da sociedade.

 

No Equador, integrante do velho Império Inca, há um ditado popular muito saboroso:

 

los derechos son papel mojado.

 

ou ainda

 

los derechos son letra muerta.

 

Por que esta descrença no Direito ?

 

A própria história política do Equador explica este ceticismo.

 

Com a proclamação da independência, a elite do país adotou o modelo liberal conservador em seu constitucionalismo.

 

Este gerou crises contínuas.

 

A consequência retratou-se na edição de dezenas de constituições.

 

Foram promulgadas nos anos de:

 

1824,1843, 1845, 1851, 1861, 1869, 1886, 1874, 1897, 1906, 1929, 1945, 1967, 1998, 2008.

 

O Equador

 

“tiene un record en la adopción de nuevas Constuciones.

 

Pero esto no se debe fundamentalmente a la necessidade de câmbios sino, mas bien, a la inestabilidad política, que ha traído consigo dictaduras frecuentes.

 

 

É verdade.

 

O estamento dominante, durante séculos, na sociedade equatoriana, apresentava-se profundamente religioso.

 

Garcia Moreno ( 1821-1875), presidente da República, consagrou o país ao Coração de Jesus.

 

Homem culto e intensamente católico.

 

Foi criado por mãe pobre e educado por um padre.

 

Rigoroso nos costumes, fazia do misticismo prática de vida.

 

Afirmava com irredutível franqueza:

 

“sou católico e orgulho me de sê-lo”.

 

Viajou a Europa.

 

Conheceu os efeitos da Revolução de 1848.

 

Voltou à terra natal ainda mais conservador.

 

Pensava:

 

para moralizar o país é preciso dar-lhe uma constituição católica.

 

Personalidade infatigável.

 

Figura estoica, justa, valente, admiravelmente lógica.

 

Garcia Moreno possuía convicção doutrinária.

 

O seu fundamentalismo religioso chegou a extremos.

 

Fez inserir, na Constituição de 1869, serem cidadãos só os adeptos da fé católica.

 

Tal posicionamento se insere no pensamento de Bolivar.

 

Na famosa Carta da Jamaica, o Libertador propunha a concepção de um quarto Poder.

 

Este cuidaria da educação e saúde moral da cidadania.

 

Um Poder guardião dos costumes.

 

O quarto Poder não foi criado.

 

Garcia Moreno conferiu à Igreja Católica tal missão.

 

Situações do constitucionalismo latino-americano em sua fase liberal conservadora.

 

Evoluíram, contundo, as instituições na América Latina.

 

Após o ciclo de regimes castrenses, deu-se o arejamento das sociedades.

 

Este permitiu a concepção de novos documentos constitucionais.

 

Constituições repletas de institutos absolutamente novos.

 

Confere-se a este novo período, no campo do Direito Constitucional, a denominação de

 

Neoconstitucionalismo.

 

A denominação merece inúmeras abordagens.

 

Os conceitos inumeráveis críticas.

 

Afirmam seus adeptos:

 

O Neoconstucionalismo abrange a visão positivista da disciplina acumulada com preocupação moral.

 

O direito não é mera norma imposta pelo Estado.

 

Deve abarcar a norma um conteúdo ético com suas emanações no cenário social.

 

Conferem os adeptos do Neoconstitucionalismo prevalência ao Judiciário.

 

A este Poder compete a guarda da Constituição.

 

Ainda mais.

 

Sua adequação às novas contingências sociais.

 

Claro:

 

Esta visão leva a elaboração de normas com preocupação pelo ser humano e com seu habitat, a natureza.

 

A preocupação com a segurança jurídica, por seu turno,conduz à formulação de constituições analíticas.

 

Com grande número de dispositivos, portanto.

 

Estes alguns breves traços do chamado Neoconstitucionalismo.

 

Tome-se a Constituição da República do Equador.

 

É conhecida como Constituição de Montecristi.

 

Homenagem ao local onde se desenvolveram os trabalhos constituintes.

 

Na leitura do longo documento – 440 artigos – se captará inovações auspiciosas.

 

Sem rigor sistemático e de maneira aleatória, alguns exemplos:

 

  • o Estado é plurinacional

 

  • Proibição de cessão bases militares a forças estrangeiras

 

  • Considerar idiomas oficiais o castelhano, o kichwa e o shuar ( artigo 2 º)
  • Garantir a preservação da jurisdição indígena (artigo 171)
  • Definir, como princípio moral básico, o invocado pelos autóctones, o

 

bem viver, o sumak kawsay.

 

Mencionado conceito surge, desde logo, no Preâmbulo da Constituição.

 

É reafirmado no Capítulo Segundo, onde se lê:

 

Derechos del buen vivir.

 

No preâmbulo da Constituição, expressa-se:

 

Celebrando a la natureza, la Pacha Mama, de que somos parte y que es vital para nuestra existência.

 

……..

 

Apelando a la sabidura de todas las culturas que nos enriquecen como sociedad.

 

No Capítulo VII da mesma Constituição se desenvolve o Regime do Bom Viver (artigo 340 e segs.)

 

Concebem-se novos direitos.

 

Quais seriam estes direitos?

 

Responde-se, sem exaustão, apenas exemplificativamente:

 

  • a aplicação dos saberes ancestrais

 

  • água e alimentação sadia

 

  • cultura física e tempo livre

 

  • mobilidade social

 

  • natureza e ambiente

 

  • biodiversidade

 

  • solo

 

  • ecologia urbana

 

  • energias alternativas

 

  • idoso, o maior de 65 anos de idade

 

  • prevê os direitos dos consumidores

 

  • reconhece os povos afroequatorianos, indígenas e montúbios.

 

  • obrigatoriedade de consulta popular sobre a exploração de recursos naturais não renováveis

 

  • educação intercultural bilíngue

 

  • obrigação do Estado recorrer a consultas populares em temas de interesse da sociedade

 

  • voto obrigatório para as pessoas com mais de 18 anos

 

  • voto facultativo para as pessoas entre 16 e 18 anos

 

  • direito a honra e ao bom nome

 

  • dever de não ser ocioso, não mentir, não roubar.

 

  • admite a ação de proteção para o amparo de direito reconhecido na Constituição.

 

Constata-se, nesta visão superficial, a riqueza da nova Constituição da República do Equador.

 

Em texto anterior – Lições do Meio do Mundo -, examinou-se a formação da Corte Constitucional do país andino.

 

Constatou-se a forma clara, aberta e moral da escolha dos integrantes daquele alto órgão judicante.

 

Há muito que apreender na Constituição equatoriana.

 

Pena:

 

Hoje, nestas bordas do Atlântico,há visão unilateral do mundo.

 

Perde-se muito.

 

A diversidade cultural tem muito a ensinar.

 

Particularmente, a dos povos latino americanos.

 

Companheiros na travessia histórica.

 

 

 

Referências.

 

Calderon, Francisco Garcia – Las democracias latinas de America – Biblioteca Ayacucho – Venezuela – 1979

 

La Vega, Inca Garcilaso – Los Incas – Comentariosreales de los incas – Ediciones El Lector – Arequipa – Peru – 2012

 

Velázquez, Santiago Velazquez – La Corte Constitucional delEcuador y el estado constitucional de derechos y justiça – Atelier – Barcelona – 2018

 

Llosa, Mario Garcia – in El ensayo hispano-americano delSiglo XX – John Skiriu, compilador – Fondo de CuluraEcnómico – 5º edição – México

 

Santamaria, Ramiro Ávila – El neoconstitucionalismo transformador – Alberto Acosta y Esperaza Martinez, Editores – Quito – 2011

 

Gargarella, Roberto – La sala de máquinas de laConstitución – Katz – Buenos Aires – 2014

 

Lembo, Cláudio – Lições do Meio do Mundo in cepes. org.br/site – 2019/02/18

*Francisco Garcia Calderon