DUAS REALIDADES HISTÓRICAS


Felizmente as comemorações estão próximas de seu fim. Uma explosão de imagens. Análises por todos os ângulos. Todas expondo sua versão. Muitos falaram. Poucos conseguiram ver além das obviedades.

Sem maior esforço o tema é captado pelo mais desatendo observador do noticiário das últimas semanas. A referência conduz às comemorações da chegada da Família Real portuguesa ao Brasil.

Mostram naves ancoradas e em alto mar. Apontaram documentos. Revelaram conseqüências da convulsão gerada pela presença de uma corte européia em pleno Rio de Janeiro do Século XIX.

Vai-se além. Discute-se quem foi o mais importante artista plástico incorporado à comitiva real. Debret ou Taunay? Há assunto para as mais diversas abordagens.

Até hoje, os brasileiros estão encantados com o convívio de uma família real com o calor e a promiscuidade dos trópicos. Gostaram tanto que agregaram às suas escolas de samba a figura do rei e da rainha.

Votou-se em plebiscito pela república. Preservou-se, todavia, uma íntima admiração pela monarquia. Um baile em palácio, antecedido por um beija-mão, é o sonho pequeno burguês de todo nativo.

Chegou-se a extremos. A antes da proclamação da República, a elite compareceu a um baile, o da Ilha Fiscal. Todos de casaca e lisonjeados por estar com o Imperador.

Aqueles que se deliciaram com minuetos imperiais, de maneira pragmática e cínica, logo em seguida, adotaram a República. Deixaram de beijar a mão do Imperador. Trocaram o uso. Passaram a limpar botas castrenses.

Volte-se à cena central: a chegada da Família Real. O evento não pode ter leitura meramente coreográfica. Os antecedentes e as conseqüências da instalação de uma corte na América são complexos e estimulantes.

Quando duzentos mil soldados franceses ingressaram na Península Ibérica, cruzando os Pirineus, Napoleão Bonaparte era aliado dos reis de Espanha e adversário da monarquia portuguesa.

Franceses e espanhóis opunham-se às pretensões inglesas. Portugal mantinha longa aliança com a Grã-Bretanha. Em Trafalgal, a Espanha sofria grave derrota naval.

Enfraquecia-se a aliança hispano-francesa. Diante da derrota marítima, Napoleão confina os reis espanhóis em Bayona. Proclama seu irmão, José, como rei da Espanha e das Índias.

Apesar das demoradas comunicações da época, as notícias acabaram chegando à América Espanhola. Geram um impacto colossal entre índios, mestiços, negros, pardos e criollos. A consciência do vazio do poder.

Novas notícias são recebidas. Passam os hispano-americanos a conhecer a criação de juntas populares por toda a Espanha. Reação popular à ocupação francesa e à inércia da realeza espanhola.

As juntas, concebidas para a proteção da soberania espanhola, transformam-se, aqui na América, em momento subseqüente, em agentes dos movimentos de independência. Surgem por toda a parte.

Foram as juntas um dos elementos da atomização geográfica da América de língua espanhola. Em sua dinâmica, ocorreu ainda a intervenção de Carlota Joaquina, esposa de D. João VI.

A partir do Rio de Janeiro, onde se instalara a corte portuguesa, a rainha enviou emissários ao território hispano-americano. Incentivou a implantação de juntas. Queria a anexação de espaços ao domínio português.

Não obteve sucesso. No entanto, os portugueses ao transferirem a corte para a colônia permitiram a preservação da geografia brasileira. Entre seus planos, Napoleão previa a dominação do Brasil.

Errou o Imperador francês. Contam os historiadores muitas vitórias e derrotas de Napoleão. Entre as suas piores derrotas, encontra-se a retirada da Família Real portuguesa para o Brasil.

Com este gesto extremo da corte portuguesa, os franceses perderam forças na península ibérica e não conquistaram o Brasil, como planejaram seus estrategistas.

Do lado espanhol, aliado da França, as perdas foram grandes. As colônias americanas se tornaram independentes. A realeza espanhola restou sem legitimidade e poder.

Faltaram, pois, análises mais aprofundadas da presença da corte no Rio de Janeiro. Uma fuga que resultou em uma grande vitória contra as armas francesas

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