A VOLTA DOS NÉSCIOS*


A literatura satírica conta com inumeráveis autores. Descrevem situações e personagens que, em determinadas ocasiões, agiram de maneira burlesca e inconseqüente.

Alguns chamam a este gênero de literatura didática. Ela, por meio da sátira, busca educar, apontando costumes equivocados e personagens burlescas envolvidas em acontecimentos específicos.

Não é nova. Perde-se a literatura de costumes em épocas remotas. Antigos pensadores lembram que a literatura deve educar, divertir e comover. Para atingir estes fins, nada melhor do que o retrato das anomalias sociais.

A sátira aponta os vícios e os crimes. A insolência e os desregramentos. A presunção e a negligência. As loucuras e os pecadilhos. Enfim, os equívocos da ação humana, quando desvencilhada de um código ético mínimo.

Todos os povos conhecem cultores da crítica dos costumes. Quer por intermédio da ironia ou até mesmo do sarcasmo. Conheceu-se, em nossa literatura, vários autores do gênero.

Gregório de Matos, descrevendo figuras da Bahia colonial, ou Viera, abordando costumes do Maranhão, colocam-se como mestres inquestionáveis. Em tempos mais recentes, Nelson Rodrigues e Millôr Fernandes.

Com os olhos nos últimos episódios da nossa vida política, a obra de crítica social a ser retirada da estante conheceu publicação na época do “achamento” do Brasil. Lá por volta de 1500. Mera coincidência.

Seu título é significativo: A Nave dos Néscios. Se o lago do Paranoá se mostrar pequeno para a imagem de uma nave, adote-se como figura símbolo uma carroça. Aí surgirá a carroça dos néscios. Dá na mesma.

Néscio é a quem falta discernimento. Aquele que não tem aptidão ou competência. O desprovido do sentido de coerência. Ou, em linguagem, simples e direta: é néscio o bronco.

Bronco conhece muitos sinônimos. Até demais. Chulo, obtuso, panaca, sáfaro, xucro, alavradeirado, bromo, cafre. Todas estas são palavras irmãs. Há, pois, mil maneiras de se dar nome ao néscio de plantão.

A lembrança da obra de Sebastião Brant, A Nave dos Néscios, autor do Século XVI, surge espontaneamente ao se rememorar as cenas políticas da última semana.

Nunca antes neste País um processo político sofreu encaminhamento tão equivocado. Erros por todos os lados. O Executivo errou. As oposições erraram. Mais uma vez, a opinião pública a tudo assistiu bestificada.

Discursos de campanha foram proferidos. Cheios de adjetivos. Pareciam se dirigir a uma grande assembléia às vésperas de uma greve. Nada disso. O destinatário era um pequeno coletivo. Apenas oitenta e um figurantes.

O Senado da República é casa com tradição de ousadia. Nasceu com o Estado nacional brasileiro. É mais do que centenário. Deve ser tratado com respeito e constante diálogo.

Quando estes dois atributos se ausentam – respeito e diálogo – explode a erupção. O vulcão adormecido lança lavras por todas as encostas. No caso, palavras. Estas ferem. Jamais são esquecidas.

Exatamente o que aconteceu. Basta analisar os dias que antecederam a votação. O Executivo falou sem parar. Acontece que, com os senadores, o contato deve ser cerimonioso. As palavras, medidas.

Ofendidos, responderam os senadores com violência verbal ausente há muito da vida política. A este panorama acrescem-se, ainda, as lutas intestinas presentes nos partidos da oposição.

No tucanato de muitos caciques, quando esses brigam, não há pajé que acalme a vaidade. Cristãos novos, os democratas converteram-se em oposição. Não basta dizer, precisam provar.

O previsível aconteceu. A CPMF foi p’ro espaço. Alguns riram. Brincaram de colombina. Carnaval de má qualidade. A contribuição, tributo de fácil arrecadação, continha apto instrumento cerceador da sonegação. Foi extinto.

Cabe, agora, recolher os restos do naufrágio. Da barca dos néscios sobraram todos os ocupantes. Os néscios continuam por aí. Permanecem sãos e salvos. Em breve, praticarão nova insensatez. É só esperar.

* O mote desta coluna é recorrente. Em versão de outra época, encontra-se no livro Eles Temem a Liberdade, editado pelo Centro de Estudos Políticos e Sociais, sob o título: Procure seu néscio (9/11/2005).

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