A PRESENÇA DA VIOLÊNCIA


No decorrer dos anos trinta, intelectuais representantes das mais diversas regiões do Brasil tentaram interpretar a índole do povo brasileiro. Alguns buscaram, em antigas descrições de viajantes estrangeiros, elementos para suas elucubrações.

Ao entrarem em contato com as populações rurais e urbanas da época, os viajantes eram recepcionados sempre com pasmo e estupefação pelos moradores dos mais remotos e díspares rincões.

A cena é fácil de ser imaginada. O europeu branco, portador de instrumentos exóticos – papel e pena de escrever, por exemplo – aproxima-se de um rude habitante do interior brasileiro da época.

Só podia merecer um tratamento diferenciado. O estrangeiro representava o inusitado. Algo jamais visto. Àquela figura exótica oferecia-se o melhor do pouco existente. Os cabralinos também foram recebidos desta maneira.

Esta realidade – registrada com benevolência pelo europeu – transformou a bonomia própria das pessoas simples em traço da personalidade brasileira. Parcela da academia cunhou a figura do brasileiro cordial.

Alguns foram além. O brasileiro não seria cordial, mas, sim, bondoso. Como criatura boa, geraria a civilização da bondade (sic). Assim prosseguiu o debate, sem qualquer prospecção na realidade.

Tempos bons aqueles. Rousseau bailava nas mentes dos mestres da Universidade recém-criada em São Paulo. Via-se e lia-se tudo em língua estrangeira. Mantinham o entorno à distância.

Esta maneira de pensar – o brasileiro como pessoa cordial – foi utilizada intensamente pelo Estado. A realidade social era omitida. A miséria endêmica lançava-se longe dos bairros de classe-média urbana.

Lès Misèrables, obra de Victor Hugo, produzia revolta nos nativos bem postos. Fechavam os olhos ao raquitismo e ao analfabetismo presente em proporções assustadoras na sociedade.

Poucos procuravam trazer à luz os descaminhos de nossa formação social. De pronto, estes poucos eram registrados como inimigos da tranqüilidade pública. Agentes perturbadores da ordem.

No entanto, não via quem não queria. A sociedade brasileira sempre contou com traços de inequívoca violência. No sul, bandoleiros agiam audaciosamente. A toda a parte, levavam intranqüilidade e insegurança.

Lá, pelo Nordeste, o fenômeno do cangaço corria solto. Por vezes, mantido pelos senhores de engenho, outras como explosão espontânea da tragédia humana vivida pelos retirantes de muitas secas.

Nas cidades, o furto e o roubo espalhavam-se como rastilho de pólvora. Desassossegavam as pessoas. Em cartas, parlamentares referiam-se à possibilidade de capangas darem boa “lição” em adversários.

A violência estabelecia-se, inclusive, no mundo oficial. O governo instalado, no ano de 1822, primeiro agente da construção do Estado nacional, sem qualquer pundonor, dela se utilizava desabridamente.

Decreto Imperial deferiu aos estrangeiros a preservação da nacionalidade de origem ou, livremente, optar pela brasileira. Uma guarnição militar, de cerca de cem homens, desejou preservar a própria nacionalidade.

O Imperador recebeu a decisão da tropa como um ato de rebeldia, apesar de sua autorização à livre opção. Determinou, em ato despótico, que os soldados recebessem, em público, cinqüenta açoites.

Tudo aconteceu no Rio de Janeiro. A violência concretizou-se no Campo de Santana. A selvageria foi ser assistida, do começo ao fim, pelo próprio Imperador e por dois de seus ministros.

Violência pura. Os desgraçados, apesar das súplicas, não foram liberados do injusto castigo. Ao som de tambores e músicas marciais, para abafar os gritos de dor, a centena de soldados sofreu a dor e a humilhação.

O Estado brasileiro, em seus primórdios, contemplou a vontade individual do Imperador com o uso da violência oficial. Nada de cordial e muito menos de bondoso. Apenas a vontade da autoridade como expressão do arbítrio.

Passaram-se cerca de 190 anos. Nada mudou. A autoridade, hoje como ontem, deseja demonstrar sua presença com o uso da violência. Sofre a cidadania.

Os últimos acontecimentos na cidade do Rio de Janeiro evidenciaram que o fio da violência interliga os múltiplos ciclos de nossa História. A vida humana pouco vale.

Para preservar uma ilusória ordem, a lei é violada, os indefesos suprimidos. Esta sociedade, que diariamente recebe notícias alarmantes de violência, não encontra em seu cerne nenhum traço do homem cordial.

Bem ao contrário.

print