A PONTA DO ICEBERG


Há situações antes inconcebíveis. Algumas figuras do cenário político e institucional eram intocáveis até pouco tempo. Ninguém ousava atacar o Papa romano.

As pessoas – mesmo aquelas de credos contrários – conflitavam com os ensinamentos do Pontífice, mas jamais deixaram de respeitá-lo como pessoa e representante supremo de uma confissão religiosa.

Outros tempos aqueles. Eram tempos em que as velhas avós italianas ensinavam a seus netos: “O Papa fala com Deus”. Procuravam indicar a sua aproximação com o Eterno.

Os velhos imigrantes, aqueles que chegaram ao Brasil quando da Grande Imigração, partiram da Itália logo após a divulgação dos documentos finais do Concílio Vaticano I, realizado no ano de 1870.

Nesse Concílio a Igreja Católica centrou na figura papal a sua indivisibilidade e unidade, conferindo, ainda, ao Papa a condição de condutor e chefe de todo o rebanho.

Muito, mas não o suficiente para se entender a responsabilidade que passou a recair sobre as posições tomadas pelos Papas, a partir de então. Com o Concílio Vaticano I, o Papa passou a ser considerado infalível.

Exatamente isto: o Papa é infalível. As suas palavras, em matéria de fé, não podem merecer qualquer contestação. São verdades. Imutáveis. Axiomas perfeitos. Não precisam comprovação. E basta.

Volta-se. Compreende-se, então, a posição daqueles velhos imigrantes. Simples e presos às tradições religiosas de suas terras. Chegaram imbuídos das verdades impostas pelos padres de aldeias a seus fiéis.

Estes ensinamentos extraídos dos púlpitos chegaram ao Brasil. Os netos dos operosos imigrantes aprenderam, por derivação, que o Papa fala com Deus, como impôs o Concílio Vaticano de 1870.

Os tempos passaram e, por todo o mundo, novas formas religiosas se introduziram. A racionalidade e a universalização da informação tornaram a relações religiosas mais abertas e complexas.

Nada mais é linear. Em todos os desvãos das palavras, encontram-se novas hipóteses de análise e de divagação. A sociedade já não recebe com simplicidade as doutrinas expostas.

Restou para muitos a fé inabalável de natureza pessoal. Mas, muitos – quem sabe a maioria – está sempre a indagar sobre os ensinamentos recebidos. Já não aceitam as palavras da autoridade como incontestáveis.

Indagam. Refletem. Contra-opinam. Uma sociedade insaciável, interrogativa, inquieta, já não aceita, como no passado, os ensinamentos das velhas avós: o Papa fala com Deus. Quer saber como e em que condições.

É a dúvida constante das sociedades ocidentais. O racionalismo conduziu às grandes conquistas cientificas e avanços invulgares no cenário temporal. Deixou, contudo, um vácuo no campo espiritual.

É este vácuo que explode, por vezes, em atos inaceitáveis de violência e desamor. Na véspera deste Natal, em plena Basílica de São Pedro, monumento maior do catolicismo, aconteceu o inaceitável.

Uma jovem de vinte e cinco anos, nascida em plena Europa, de origem suíça, em movimento inusitado, pula como um felino e alcança o Papa em sua caminhada para o altar maior da Basílica.

Todos os meios de comunicação retrataram aquele gesto impensável por parte de uma civilizada européia. Foram parcos em explicações. Trata-se de uma jovem perturbada mentalmente. Apenas isto.

Explicação simples. Pueril. Seria necessário analisar-se o contexto religioso europeu, onde o número de não crentes cresce assustadoramente. A fuga dos templos – de todas as confissões – é significativa.

A Europa – com todas as suas vaidades intelectuais – já não se percebe que suas velhas tradições estão a ruir. Deseja-se cristã e procura impedir o ingresso da Turquia na União Européia.

Não constata, porém, que dentro de suas fronteiras, os seus valores estão em plena erosão. As violências contra imigrantes e as ingênuas manifestações contra outras religiões cobram um preço.

Explodem gestos inacreditáveis de violência, como o perpetrado pela jovem suíça. Agride em momento superior da cristandade. Já não se respeita a nada. Nem sequer às pessoas.

Termina melancólico o ano de 2009. Um acontecimento, em cerimônia religiosa, demonstra que a Europa está enferma. Gravemente enferma, apesar da empáfia de muitos europeus.

Na noite de Natal, em pleno Vaticano, como em outras recentes oportunidades, veio à tona parte do grave processo de perda de valores que corrói o cotidiano da Europa. Só não vê quem não quer.

print