O CÉTICO TOCQUEVILLE OU O OTIMISTA PANGLOSS?


As pessoas se nutrem com idéias de um mundo que já não existe. Passou. Persistem, no entanto, nesta prática. Os alicerces do presente são buscados em autores do passado. Em documentos legados pela História.

É da alma humana. Alteram-se os costumes. Rompem-se preconceitos, mas no inconsciente permanecem as marcas dos tempos que se foram. Para o tradicionalista, o passado é sempre melhor que o presente.

Não é verdade, porém. Mesmo no interior dos guetos de miséria ainda existentes, a situação social contemporânea é infinitamente melhor daquela vivida pelos antepassados das atuais gerações.

Os serviços de saúde e educação estenderam-se aos vários segmentos econômicos. A saúde tornou-se um direito de todos e um dever do Estado. A educação assume idênticos contornos.

A previdência e a assistência social buscam cumprir seus objetivos. O Estado Social de Direito encontra-se consagrado na legislação constitucional e recebe tratamento privilegiado pelo legislador ordinário.

Parece, pois, que se vive no melhor dos mundos! Certamente, esta seria a exclamação de Pangloss, o eterno otimista imaginado por Voltaire com traços irônicos.

Não é bem assim. A pobreza espalha-se por grandes espaços territoriais. Os equívocos do passado refletem-se poderosamente no presente. Nas regiões onde a presença da monocultura foi desmedida, a miséria é alarmante.

Esta miséria imigrou. Deixou suas regiões de origem e espalhou-se pela periferia das cidades. As metrópoles tornaram-se vulcões sociais sempre prestes a entrar em ebulição.

Ingênuo quem imaginar o contrário. Desconhece a realidade concreta. Vive em mundo artificial desconectado dos múltiplos segmentos que formam a complexa sociedade brasileira.

Ainda porque a História registra que a integração social não é uma concessão dos bem aquinhoados. Ao contrário, é resultado de lutas. Conquistas e imposições.

As lutas podem, por vezes, amainar. Mas ressurgem sempre que uma faísca de revolta cruza o firmamento social. Pode ser mero corisco. Ou se comportar como uma imensa tempestade.

Na busca de evitar coriscos e tempestades, a sociedade brasileira optou por um caminho de atalho. Concebeu a bolsa família. Distribui a milhões de pessoas, em situação de miserabilidade, um mínimo para a sobrevivência.

A primeira visão é positiva. Apesar do antagonismo de muitos. Retira-se da linha de pobreza pessoas marginalizadas. Reduz-se a distância ao acesso a bens essenciais à sobrevivência.

A bolsa família atinge seus objetivos imediatos. A miséria opressiva é relativamente afastada da sociedade. Todos dormem em paz. Acontece que retornar ao passado é próprio da alma humana.

E, ao voltar ao passado, cai sob os olhos um autor de citação usual. Um aristocrata francês que contou com capacidade para observar a realidade e analisá-la como um frio cirurgião.

A referência é a Alexis de Tocqueville. Sempre citado por sua obra A democracia na América, onde examina o surgimento da sociedade norte-americana e os traços de seu nascimento.

Recorda o aristocrata francês a existência, nos Estados Unidos, de três fatores decisivos em sua formação: (1) as condições físicas, geográficas e climáticas, (2) as leis e (3) os costumes, princípios, usos e opiniões.

Claro que estes indicadores também podem ser aproximados da realidade brasileira e, assim, captar-se, no passado, os elementos formadores de nossa comunidade nacional.

Mas, não é A democracia na América que importa neste passo. Outro livro de Tocqueville interessa no momento em que se aplica a bolsa família de maneira extensiva. Trata-se de Democracia e pobreza – Memória sobre o pauperismo.

Tocqueville analisa a Inglaterra, dos anos oitocentos, e se mostra perplexo com os efeitos da aplicação pelo governo inglês da assistência legal, algo análogo a nossa bolsa família.

A assistência legal, na opinião de Tocqueville, conduziu o povo inglês para um quadro funesto. Retirou dos assistidos a possibilidade de se auto-erguerem. Caminharem por si próprios.

Enfim, para o aristocrata francês a assistência legal – a nossa bolsa família – jogou os pobres a pior das indigências: roubou-lhes o amor próprio. Será verdade?

As observações do passado não podem ser aplicadas por inteiro no tempo presente. Mas, a ausência de reflexão é comportamento ingênuo. Cabe analisar os pensamentos de Tocqueville.

Ainda porque todos estão submetidos à pressão transformadora da História.

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