A LIÇÃO MAIOR DO “NÃO”


Entre as grandes realizações da arquitetura política, encontra lugar de relevo a edificação da União Européia. Após séculos de lutas fratricidas, os europeus resolveram somar esforços comuns.

Abdicaram de posições nacionalistas. Limitaram suas soberanias. Abriram suas fronteiras. Construíram um espaço econômico comum com grande êxito.

Elaboraram um projeto de Constituição. Em diversos países este documento foi levado ao voto popular. Criou-se o primeiro obstáculo. Os franceses e os holandeses votaram contra a proposta.

Os líderes europeus reagiram com resignação ao obstáculo criado pela cidadania dos dois estados nacionais. Deixaram o tempo avançar. Quando os efeitos exauriram-se, voltaram a se reunir, em dezembro de 2007.

Foi no Mosteiro dos Jerônimos, às margens do Tejo e perante a Torre de Belém. Os navegantes – ou melhor, os chefes dos vinte e sete estados europeus – por unanimidade assinaram o Tratado de Lisboa.

A harmonia política voltou à comunidade dos países europeus. Os eurocéticos – aqueles que não acreditam em uma Europa única – sofreram um revés.

O Tratado de Lisboa contém uma exigência. Deve merecer aprovação por todos os signatários. Apenas um estado nacional necessitaria, por motivos constitucionais, aprovação popular: a Irlanda.

Desconhecida dos líderes europeus, a lição de Nelson Rodrigues ainda uma vez confirmou-se: Toda unanimidade é burra. Não deu outra. Um sonoro não popular.

Duro resultado. Os eurocéticos exultaram. Não desejam a ampliação dos limites da União Européia para o espaço político. Querem os seus extremos exclusivamente dentro de parâmetros econômicos.

Não desejam um ministro da Defesa comum a toda a comunidade. Muito menos a solução de questões internacionais pela diplomacia da União. Detestam os burocratas de Bruxelas.

A par de todas estas objeções, os antagônicos à União Européia contam, no presente, com aliado poderoso. A crise econômica que abala todas as sociedades, particularmente as carentes de alimentos e petróleo.

O aumento dos preços dos combustíveis aflige a imensa classe média européia que, apesar de seu nível de escolaridade, como todas as sociedades, em tudo coloca a culpa no governante de plantão.

Os dirigentes merecem sempre repulsa. A melhor maneira de vocalizá-la é por meio do voto. Os irlandeses aproveitaram a ocasião do referendo. Proclamaram uma sonora negativa.

Difícil desmontar a bomba. Os tchecos se mostram em defensiva. Prometem rejeitar o Tratado de Lisboa pelo seu parlamento. Os poloneses pensam em novos caminhos jurídicos, além do Tratado de Lisboa.

Já se fala em afastar o alargamento da União Européia. Os países candidatos a ingressar ficam em expectativa. A Croácia sofre. Seria, em princípio, o vigésimo oitavo estado componente da Grande Europa.

A lição maior do “não” irlandês não se encontra nas aparências expostas pelos líderes europeus. Encontra-se, na verdade, na questão crucial a ser enfrentada pelo Século XXI.

Há, por toda parte, onde se adotou a democracia como regime de convivência social, um nítido divórcio entre a vontade popular e a intenção dos dirigentes, mesmo que eleitos pelo voto direto.

As sociedades reagem com intensidade aos vários impulsos advindos da economia e das circunstâncias. Os dirigentes políticos, distantes do dia-a-dia dos cidadãos, costumam se alienar.

Este é o grande risco. Os quinhentos milhões de europeus pensam de acordo com suas necessidades atuais. Os seus líderes de conformidade com as premissas elaboradas no passado.

É forte a dissintonia entre estas duas posições. O resultado é obtido de pronto. Consultado o eleitorado, a resposta é contrária à vontade dos representantes.

Os cientistas sociais e os políticos militantes precisam se debruçar sobre esta realidade. O mandato representativo – insiste-se ainda uma vez – nos moldes elaborados na Revolução Francesa esgotou-se.

Uma sociedade midiática a que tudo conhece de imediato necessita de formas de expressão mais diretas. Não se contentará com as decisões de seus representantes elaboradas sem ouvi-las.

Esta é a lição do “não” irlandês. No único estado nacional que submeteu o Tratado de Lisboa ao eleitorado, a resposta foi negativa. Estranho. Muito estranho. Sociedade e representantes não falam a mesma linguagem.

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