TRAÇO DO CARÁTER NATIVO


Os povos possuem traços característicos específicos. Estes os identificam. Confere-lhes a personalidade coletiva. Esta é concebida ao longo de largos períodos de tempo.

Algumas comunidades se mostram constantemente alegres. Outras circunspetas. Poucos sabem dosar os momentos de alegria e tristeza de maneira harmônica. O equilíbrio é sempre muito raro de ser atingido.

A partir deste cenário, coloca-se o mais universal dos temas. Aquele que não autoriza qualquer exceção. Ou mais afirmativamente, é regra sem exceção: a morte.

Alcança a todos e a todos beneficia com a libertação. Cada povo a trata de uma forma peculiar. No período medieval, na Europa infestada por pestes, ocorriam procissões simbolizando a inexorável passagem.

Na cidade hanseática de Lübeck, antes dos trágicos bombardeios aéreos da segunda guerra mundial, havia em sua igreja central um grande afresco. Representava um cortejo de corpos a caminho do infinito.

Todas as classes sociais se encontravam representadas. Mercadores, banqueiros, soldados, clérigos ou meros jograis. Ninguém ausente. Com traços seguros, o artista registrou a universalidade da morte.

Em todo período medieval, ela apavorava. As guerras e pestes faziam parte do cotidiano das populações. Na Renascença, buscou-se fuga nas artes ou em novo misticismo carregado de esoterismo.

Em sua ânsia de progresso, o Iluminismo esboçou uma âncora psicológica. O homem conseguiria se libertar de todos os males. Mera esperança. Decapitada nas revoluções populares.

Nos tempos modernos, as guerras atingiram as populações civis e transformaram a morte em companheira diária. Os que escapavam desejavam esquecer.

Um traço, porém, se mostrou presente em todos os povos. Com intensidade em graus diversos, o culto à morte. Os povos mediterrâneos, em sua heterogênea constituição, excederam-se.

As famílias se reuniam para a despedida final. Eram acompanhadas por carpideiras – pessoas especializadas em cantos mortuários – em longas orações.

Certamente, um componente oriundo das tradições judaicas e, mais remotamente, dos cultos greco-romanos. A etapa seguinte, constituía-se em visitar ou erguer o túmulo familiar. Lugar de devoção e recolhimento.

O mundo contemporâneo, em seu habitual cinismo, afastou-se dos velhos costumes. As unidades de terapia intensiva tornaram-se câmaras soturnas de se atingir o fim, sem a presença das famílias.

Tudo é mecânico. Poucos povos permanecem fiéis ao culto à morte. Os mexicanos apresentam-se como raridade. As crianças e os adultos aprendem a conviver com o inevitável.

Querem ter presentes a brevidade da vida e as tolas vaidades do cotidiano. Sabem que a morte é a dissolução das vidas em comum pela destruição de um de seus membros.

E os brasileiros? É peculiar a atitude nativa perante a morte. Em regiões do nordeste profundo, ainda há carpideiras cantando, durante o funeral, as qualidades de quem se foi. Resquícios da colonização ibérica.

Lá apenas lá. Por toda a parte, os brasileiros apenas se mostram sensíveis na presença da morte de alguém. Mas, esta sensibilidade se esvai rapidamente.

Encontra-se ausente, no pensar brasileiro, o culto à morte ou ao passado. Apenas vive-se o presente e a esperança do futuro. Rara forma de ser. Não há heróis no Brasil. Os que passaram não importam.

Por maior esforço realizado, por determinados governos, os heróis não prevaleceram. As raras estátuas são esquecidas. Os monumentos desprezados.

Os mortos não importam. Os brasileiros temem a solidão intrínseca ao ato de morrer. Acostumados a viver de maneira coletiva, alegres e envolvidos pela luz dos trópicos, não apreciam o ignoto.

Procuram manter a morte à distância. Esquecê-la. Não desejam deslizar além do mundo conhecido, repleto de afetos e calores humanos. É melhor deixar à margem a idéia e a imagem da morte. Vive-se, nesta terra, o cotidiano.

A visão igualitária da morte não é cultuada, apesar das imensas desigualdades da vida. É só observar e concluir. A morte não é um símbolo nacional, como em outras realidades.

Os brasileiros cultuam o esquecimento.

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