RÉQUIEM


Silêncio glacial por aqui. Nenhuma notícia. Nem mero comentário. Sequer uma nota. Um singelo registro. Ausência plena de comunicação. A mídia nacional omitiu-se inteiramente.

Aconteceu, no entanto. Algo tremendamente relevante. Levou o presidente Bush ao desconforto. Dor imensa. Incomensurável. A morte de inocente sempre causa angústia.

George Bush não fugiu à normalidade humana. Sofreu com a grande perda. Não se trata da morte de criancinhas. Elas são tantas. Esfomeadas. Maltrapilhas. Deprimidas.

Muito menos de adultos tombados em guerras sem motivos e razões. A dor do presidente norte-americano contém graus superiores. Vai além do costumeiro.

Prestes a deixar a Casa Branca, Bush vê-se despedido das honras inerentes ao cargo. Na véspera da passagem para o cenário privado, perde amiga. Quem sabe a única. Lamentável.

Não amiga qualquer. Amiga diferenciada. Daí a amargura do presidente. Morreu Índia, a gata de estimação de Bush. Produziu dor incomensurável. Era velha companhia do mandatário.

É verdade. Tanto é verdade que a morte mereceu espaço especial na Casa Grande. O site oficial transmitiu a perda. Existem poucas gatas de qualidade. De alto pedigree.

Crianças mortas, em compensação, são tantas. Não chocam os sentimentos dos dirigentes. É imagem costumeira. Ocorrem todos os dias. Os noticiários estão fartos destas imagens.

O episódio demonstra os intricados componentes da alma humana. A morte de uma bichana ocupa o privilegiado espaço do noticiário oficial do Governo dos Estados Unidos.

Outras mortes – sem importância – nunca comoveram o Presidente Bush. Não chorou no 11s. Não se comoveu com as fotos dos torturados de Guantanamo.

Manteve-se insensível com o desaparecimento de milhares de pessoas no Iraque. A fome no continente africano não o impressionou. Estes temas não ingressaram nas divagações presidenciais.

O caso é exemplar. Demonstra como as personalidades públicas, no alto de seus cargos, perdem os limites da condição humana. Transformam-se em semideuses.

Nesta condição – de aspirantes de condição divina – os dirigentes não se comovem com o sofrimento humano. As razões de Estado impedem. Maquiavel recolheu, por inteiro, a alma humana.

Como é angustiante conviver com situações como a da morte de Índia, a gata de estimação. No mesmo momento, jornais estampavam a morte de centenas de crianças e adolescentes. Nenhuma preocupação.

A condução dos assuntos de Estado sempre preocupou a pensadores. Muitos manuais para a prática do bom governo existem. Comumente, elaborados por predecessores de monarcas.

Hoje, obras semelhantes não se encontram presentes nas preocupações de filósofos, teólogos e pensadores de todos os tipos. A realidade é perversa. Perdeu todo o conteúdo humano.

Vale, agora, o mero exercício do Poder. Apesar dos mecanismos constitucionais de limitação, um presidente da República é um quase monarca, principalmente nos Estados Unidos.

Age, por vezes, com traços absolutistas. Pode tudo. Decide sobre a morte de inocentes. Liquida civilizações. Avança por espaços particulares. Rompe velhas tradições alheias.

Só não pode evitar a morte das gatas de estimação. Os mortais podem causar mortes. Não a podem sustar, porém. Ela a todos igualiza. Presidentes e gatas morrem igualmente.

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