BERNARDINA CONTA TODA A VERDADE


A análise do cotidiano é a melhor forma de se entender os grandes momentos históricos. Saber como as pessoas viviam. Quais seus costumes. Como se portavam as pessoas frente aos acontecimentos.

Alguns historiadores lançaram-se a esta tarefa e puderam reproduzir os cenários europeus de várias épocas. Reconstruíram, assim, as raízes da própria civilização ocidental.

Esta escola historiográfica conquistou adeptos e, aqui no Brasil, muitos estudiosos lançaram-se à busca de documentos, especialmente familiares, que pudessem oferecer traços de nossa sociedade em momentos diferentes.

Todos ganharam. Hoje, já se pode conhecer, sem traços grandiloquentes, mas na singeleza do diuturno, como viviam os nossos antepassados. Este estudo desmistifica e humaniza as figuras históricas.

Retratam as pessoas comuns com suas idiossincrasias, sonhos e frustrações. Querem pouco. Contentam-se com menos ainda. As vidas dos comuns não contêm surpresas. Correm sem sobressaltos maiores.

Estudar o passado, a partir de acontecimentos domésticos, permite recolher ensinamentos. Observar atitudes. Desmistificar os falsos heroísmos retratados pelos bajuladores.

Em uma sociedade onde não há culto a heróis, os livros da intimidade das famílias conduzem a um revigoramento deste conceito. Tudo se torna singelo e prosaico. A vida é simples.

A editora carioca Jorge Zahar – já tão tradicional na oferta de grandes obras – acaba de publicar um livro precioso: O Diário de Bernardina. Ou Da Monarquia à República pela filha de Benjamim Constant.

Exatamente isto. Em cadernos singelos, com estilo direto e sem rebuscamentos, a filha de um dos proclamadores da República registra o dia-a-dia da família, nos dias que antecederam o 15 de novembro.

Nada de heróico. Prosaico. A monarquia está para ruir. Na família de Benjamim Constant de Botelho de Magalhães, a preocupação é comprar um terno para o pai. Ou um mero chapéu para mãe.

Triste. Benjamin Constant, nas vésperas do grande acontecimento, sofria uma tremenda dor de dentes. Sua mulher, uma esposa como as de antigamente, prepara emplastros para colocar na face do herói.

Não venceu a dor e muitos menos o inchaço. Restou ao dentista dar fim ao sofrimento do proclamador da República. Extraiu o dente. Solução definitiva. Nada de implantes. Restou o vazio.

As visitas entravam e saiam da moradia de Benjamin Constant, em uma monótona repetição. Nas vésperas do golpe, uns poucos oficiais e estudantes das Escolas Militares aparecem. Entram e saem.

Após a implantação da República, as visitas se ampliam, surgem Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca. No dia 15 de novembro, também Ruy Barbosa vai à casa do mestre positivista.

Fantástico. Nas vésperas da queda do Império, ocorre o conhecido Baile da Ilha Fiscal. A família de Benjamin Constant fica excitada. Não foram convidados. Faltava-lhes nobreza.

Dirigem-se ao cais e ficam assistindo estupefatos a passagem dos muitos convivas: oficiais chilenos e nobres, naquele ato que seria o último da monarquia.

Benjamin Constant não se conforma. No embarcadouro, solicita permissão para a ida de sua família até a ilha e retornar, sem ingressar no baile. Apenas para ver de perto.

Não foi consentido. Bernardina registra: Papai alugou um escaler e fomos até perto da ilha. Vimos perfeitamente às pessoas e a ilha, conclui a filha do proclamador da República. Todos fora do baile.

Benjamin Constant, segundo o relato de sua filha, era uma pessoa simples. Detestava andar fardado. Apreciava roupas civis. Tinha hábitos além de singelos. Residia com a família em um instituto oficial de ensino.*

Mostrou-se um típico brasileiro. Não se despediu de D.Pedro II. Este, ao embarque, considerou Deodoro e Constant dois grandes amigos. Quis se despedir do pai de Bernardina.

Seu pai, porém, não foi ao abraço final. Sentiu-se muito comovido e não teve coragem. Pedro II era muito estimado pelo povo. Bernardina, em sua simplicidade, mostrou o Brasil por inteiro.

Não se nasce no Brasil para herói. Isto é coisa de povos sem confiança em si próprios. Precisam de símbolos para sobreviver. O brasileiro sabe que tudo que é humano é falível.

* A leitura do Diário permite compreender o art. 8° das Disposições Transitórias da Constituição de 1891: “A viúva do mesmo Dr. Benjamin Constant terá, enquanto viva, o usufruto da casa…” onde morreu o republicano.

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