A PERDA DE DAHRENDORF


Convive-se com a plenitude da informação. Tudo que acontece, sabe-se imediatamente. Não há censura. As formas secretas de convivência deixaram de existir. Quando permanecem, rompem-se. Não perduram.

As pessoas passaram a conhecer seus direitos. Por eles, lutam e exigem efetiva concretização. Os espaços obscuros, em acelerada marcha, abrem-se à luz. Todos merecem idêntico tratamento legal.

Nem sempre foi assim. Durante séculos, as sociedades viveram regimes absolutistas, onde apenas alguns usufruíam privilégios. A imensa maioria encontrava-se subordinada. Desconhecida. Suportava todos os ônus em silêncio. Cabisbaixa.

Longa foi a luta das sociedades para romper os grilhões do absolutismo e da dominação. Verteu-se sangue. Vidas caíram. Regimes totalitários foram impostos sob a promessa de igualdade social.

Longas guerras ocorreram. Dois regimes de imensa torpeza se instalaram: o comunismo e o nazismo. Governos sem qualquer respeito às individualidades. Nada valiam os direitos clássicos das pessoas.

Milhões morreram em campos de extermínio e de trabalho. Vozes se calaram. Um silêncio profundo acobertou imensos desatinos. Um cínico comprometimento atingiu todas as sociedades. Poucos se salvaram da covardia generalizada.

Estes poucos se mostraram combativos. Não silenciaram. Podem ser enumerados nos dedos de uma única mão. Mas, devem ser considerados valorosos. Jamais se omitiram perante os descalabros de governos de todas as espécies.

Estes poucos pertencem a uma família doutrinária com traços definidos. Não acompanham os modismos acadêmicos ou as arengas dos populistas de ocasião. Eles possuem raízes profundas e convicções arraigadas.

Estes poucos são os herdeiros de movimento surgido no Ocidente e que se espalhou por todos os espaços geográficos. Algumas vezes sofrem perseguições. Receberam em seus rostos frases irônicas, agressivas.

Não se acovardam, porém. Sabem que são arautos da liberdade. Preservam os direitos das pessoas. Acreditam, firmemente, que cada pessoa é titular de vontade própria e, como tal, irradiadora de idéias e novas concepções de vida.

Não discriminam em razão de raça, credo ou situação econômica. Ao contrário, lutam contra todas as formas de discriminação. Proclamam serem todas as pessoas titulares de valores. Estes devem ser respeitados, afirmam convictamente.

Estes poucos que nunca se calaram. Eles têm nítida filiação doutrinária. São os liberais. Combatidos nestes últimos séculos, pelas mais diversas formas de opressão, continuam a pregação.

Nasceram em tempos remotos. Tomaram corpo em grandes revoluções: inglesa, americana e francesa. Criaram um arcabouço de idéias que permanecem mesmo em situações adversas.

Hoje, o pensamento liberal está inscrito em todas as Constituições dos povos democráticos. E de maneira solene. Sempre entre os primeiros artigos dos documentos constitucionais. Todas as cartas maiores oferecem um elenco de direitos das pessoas.

Estas recordações emergem em momento de perda de um grande pensador liberal. Morreu Ralf Dahrendorf. Este estudioso de origem alemã, viveu grande parte de sua vida no Reino Unido. Foi um defensor intransigente da liberdade.

Na sua pregação, não se poupava. Quando o Brasil vivia os empolgantes episódios de sua redemocratização, Dahrendorf deslocou-se até o Rio de Janeiro e proferiu importantes exposições sobre a doutrina liberal.

Alguns de seus textos foram traduzidos para o português. Uma de suas obras teve importante repercussão entre os estudiosos de temas sociais. Foi publicada pelo Instituto Tancredo Neves ligado ao Partido da Frente Liberal, hoje Democratas.

O seu título pode, à primeira vista, causar estranheza. No entanto, trata-se de precioso estudo sobre os desafios dos tempos contemporâneos. “A lei e a ordem” aponta para a desintegração do respeito à lei nas sociedades de hoje.

O autor, no ano de 1985, captou o fenômeno da entropia que atinge às sociedades em graus diferentes. Falta o espontâneo acatamento à lei. As gangues urbanas ou os políticos engravatados esqueceram-se o primado da legalidade.

Agem de acordo com seus desejos e objetivos. Ferem valores e princípios. Menosprezam o sistema legal. Com esta atitude, geram a insegurança e tornam fracos os governos. Muitas vezes até os imobilizam.

É patético o início de “A lei e a ordem”. Dahrendorf, então com dezesseis anos, descreve a tomada de Berlim pelas tropas soviéticas. Tudo era destruição. Nada preservado. As pessoas mais educadas e honestas praticavam saques. Furtavam.

A partir deste episódio dramático, como foi a queda de Berlim, ele demonstra os riscos de se viver sem lei. Só esta confere segurança às pessoas. Permite uma convivência respeitosa entre homens e mulheres.

Dahrendorf, posteriormente, deteve-se sobre a queda do muro de Berlim. Acompanhou os episódios de 1989 com sofreguidão. Acreditou – e de forma convicta – que se iniciava um período de esperança para a humanidade.

Não errou. Nestes últimos anos mais povos passaram a viver em liberdade e em regimes democráticos. Os governos autoritários ou totalitários, ainda existentes, vão aos poucos se fragilizando.

Uma sociedade aberta vai se formando por toda a parte. Mulheres e homens protestam quando vêm suas vontades violadas. É o nascimento de uma sociedade livre de dogmas e preconceitos.

Dahrendorf – durante toda sua vida – lutou por sociedades livres e democratas. Alguns brasileiros são testemunhas de sua pregação. Todos podem ler sua qualificada obra. É aprendizado liberal.

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