A MORTE E O CONTROLE REMOTO


Na histórica cidade livre de Lubeck, lá no norte da Alemanha, nos duros tempos da Idade Média, anônimos lançaram afresco significativo nas paredes de grande igreja.

Destruído, quando o povo alemão já não possuía capacidade de resistência, este afresco é observado pelos visitantes em antigas fotografias anteriores à violência praticada pelas bombas aéreas.

O seu nome e sua figuração refletem a dança da morte. Nele, centenas de pessoas – de todas as classes sociais da época – em procissão, desfilam a caminho do momento final: a morte.

Este célebre afresco – reduzido a pó pela sanha vingativa de uns poucos – permite a comparação do tratamento oferecido à morte no medievo e na contemporaneidade.

A morte, na Idade Média, comumente, era produto de pestes e de lutas fratricidas. A religião podia salvar almas e confortar os sobreviventes pelas perdas. Um lenitivo.

Aplicavam-se rituais quando se aproximava o inevitável. As famílias estavam presentes. Depois, vinham o acompanhamento do féretro e os votivos. Os atos decorriam em espaço individual e coletivo.

Ou melhor, dava-se envolvimento de muitos no acontecimento final. Os tempos modernos paulatinamente foram alterando os costumes. Quem sabe, as grandes navegações no mundo ibérico causaram as mudanças.

Já não se morria em casa ou nos alojamentos. A vida perdia-se nas ondas dos mares e oceanos. Os aventureiros marítimos, quando tinham sucesso, podiam perder suas vidas em terras estranhas e longínquas.

Avançou-se. O individualismo tornou o ato de morrer em operação técnica e sofisticada. Especialistas, no interior de unidades de terapia intensiva, assistem o momento derradeiro. A solidão rodeia o moribundo.

Tudo se dá longe dos olhos dos amigos e familiares, ainda porque estes não desejam oferecer apoio e companhia ao improdutivo desfalecido. Quando antes melhor, depois o enterro o mais rápido possível.

Estas imagens são sugeridas pelos episódios verificados no Haiti. A morte se mostrou em sua plena rudez. Nada rápido e nem obscuro. Estourou nas ruas e nas praças. Decepou pessoas. Agrediu seus alvos sem compaixão.

Os telespectadores, em casas – confortáveis ou taperas – querem se livrar das cenas exibidas. Demonstram compaixão, mas apresentam pouca sensibilidade.

Querem, na verdade, de acordo com os costumes contemporâneos, se livrar das imagens macabras. Não existe o velho sentimento medieval que perdurou muitos séculos.

A piedade e a compaixão já não são próprias dos dias que passam. Vale a busca de felicidade material a qualquer preço. Os sentimentos profundos da fraqueza humana ficaram no passado.

O ser humano contemporâneo – titular do controle remoto – acredita que pode alterar os acontecimentos mediante simples toque de botão e conseqüente mudança de canal.

Ao mudar de canal, as pessoas pensam se livrar do inaceitável. Acreditam-se titulares da vida e da morte. Despem-se da situação humana. A elas, titulares do controle remoto, nada acontecerá. São senhores da História.

Destes atos cotidianos e banais surge a idéia de onipotência. O culto da vida plena e de seu desfrute sem qualquer obstáculo. Tudo vale. É preciso levar vantagem. Vencer ou vencer.

É utopia. Mas é bom pensar que o horror produzido pelo terremoto haitiano pode vir a produzir uma carga de humildade nos cidadãos de todo o mundo.

A fragilidade do ser humano ficou demonstrada plenamente. Nada vale. A vida é liquidada em questão de segundos. Rui como ruíram os prédios de Porto Príncipe.

Parece piegas o exposto. Religiosidade fora de moda. Sentimentalismo sem objetivo. É possível. Mesmo estes posicionamentos contrários – e quem sabe concretos – no entanto, não afastam a realidade da morte.

Não se trata de buscar-se a salvação extraterrena. Aponta-se para a necessidade de se entender a complexidade das relações humanas. Estas não podem se retratar no amargo cotidiano do individualismo. Necessita-se ir além. Compreender que o ato de existir é muito restrito. Frágil. Aceitar que as relações sociais necessitam de solidariedade recíproca.

Os milhares de mortos espalhados por toda a parte, lá no Haiti, apontam para a transitoriedade da condição humana. Quem sabe desta tragédia possa-se obter um pouco de humildade.

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