O PAPA PEDE PERDÃO


Vergonha! É o sentimento presente na consciência de muitos. Aqueles que aceitaram os valores morais propagados, as formas de convivência transmitidas em espaços religiosos.

A figura do cura impunha respeito. Dignificava o lugar onde sua presença surgia. Toda cerimônia pública ou familiar exigia sua palavra. Era lenitivo para os percalços do dia-a-dia. Para os erros pessoais.

No último sábado – 19 de março – a carta do Papa Benedito XVI ao clero da Irlanda desvenda e assume, urbi et orbi, pesadelo que domina toda a hierarquia e atormenta aos laicos:

A infame presença de abusos sexuais em jovens entregues aos cuidados de colégios religiosos. Por toda a parte surgem notícias e mais asperamente na nobre e valorosa Irlanda.

Em defesa dos ideais religiosos de grande parte de seus iguais, os irlandeses combateram e morreram. Conheceram perversidades sem par e estimularam avanços no pensamento político.

No entanto, alguns agrediram a confiança de muitos. Aproveitaram-se da fraqueza de crianças e jovens e os submeteram a sevícias intoleráveis. O abuso sexual é nefando. Inaceitável. Intolerável.

A relação de corpos só pode ocorrer quando existir recíproca confiança e pleno consentimento. Toda vez que faltar – confiança e consentimento – a violência marcará presença, mesmo no mais superficial contato.

A carta do pontífice é documento extraordinário. Uma instituição milenar, acostumada a manter em reserva atos de seus integrantes, apresenta sem censura deplorável ação de alguns de seus membros.

À mente vêm situações perdidas nos séculos, onde a maldade substituiu a bondade. A violência a boa palavra. Aniquilada restou a dignidade humana. Tristes acontecimentos inscritos em autos da Inquisição.

Lá, os réus eram relaxados, muitas vezes, para Justiça comum. Deixavam a jurisdição eclesiástica e passavam a ser submetidos a processos subordinados à lei do Reino.

Agora – quanto aos episódios relatados no documento papal – os autores de delitos de natureza sexual são enviados à Justiça do Estado irlandês para processá-los e, se for provado, condenados.

Nada, contudo, é dito sobre penas impostas pelas dioceses a que pertencem os acusados. Nem a alta hierarquia e muitos menos as esferas locais são chamadas a se pronunciar.

Parece abdicação da legislação canônica em favor da legislação do Estado. Um elemento novo nas relações do Estado do Vaticano com as demais soberanias existentes.

Triste e deplorável episódio. Leva a muitas reflexões. A fragilidade humana se apresenta em toda sua dimensão nos acontecimentos da Irlanda. O prazer da dominação e da submissão do mais fraco.

A capacidade de personalidades bem formadas intelectualmente de se portarem como entes primitivos. A força da sexualidade na vida das pessoas. Elemento que, muitas vezes, foge do controle racional e ético.

São temas que afloram em momento tão delicado. Explode ainda a presença dos Concílios de Elvira (306) e de Roma (386), quando decretos foram emitidos, instituindo o celibato para os presbíteros.

Mais tarde – muito mais tarde – Paulo VI voltou ao tema e apontou o celibato como capaz de tornar a pessoa – o pastor – mais disponível aos irmãos (Carta Apostólica Sacerdotalis coelibatus (1967)).

São posições aceitáveis, mas discutíveis face às situações vividas por toda a parte por integrantes do catolicismo. As sociedades se alteraram e os costumes, a seu turno, de maneira alarmante.

As condutas de outras épocas já não se coadunam com as maneiras contemporâneas de viver. A vida em comum, em casamento monocrático, lição do cristianismo, se impôs por todo o Ocidente.

O celibato, por seu turno, não é dogma religioso. Trata-se de mera imposição aceita no decorrer dos tempos. A “virgindade consagrada” não pode ser imposta indiscriminadamente.

Acontece o pior. A carta do Papa a seu rebanho é documento corajoso. É sinal de novos tempos, onde a verdade dos atos humanos já não pode ser objeto de mitigação. A transparência é valor vitorioso.

As comunidades de base deverão se debruçar sobre o amargo documento e propor novos caminhos e rumos para a vida religiosa. Não é sem tempo.

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