ABERTA A TEMPORADA DE CAÇA AO PLÁGIO


Em pleno século XXI o tema atinente à ética e à moral retorna à cena com acentuada intensidade. Isto em todas as áreas de convivência no âmbito das comunidades sociais. Na plataforma da política, em que os malfeitos – como diz a Presidente brasileira – se multiplicam a uma velocidade de nave espacial, no espaço de exercício da cidadania, na trajetória evolutiva do mercado, nas relações de trabalho e, nos últimos tempos, assumindo caráter agudo e preocupante, no panorama da pesquisa científica.

 

 

Sigilo, comprometimento com uma equipe de trabalho, respeito, dedicação e amor ao esforço científico que busca o desenvolvimento e novos instrumentos de atendimento das demandas democráticas correspondem, hoje, a elementos carentes de conteúdo. Cada um lhe oferece a própria interpretação e ao que tudo indica, a plataforma da investigação científica acabou sendo invadida por um fenômeno do acervo junguiano[1] conhecido como a atuação do inconsciente coletivo que, no caso, repousa sobre a ideia de levar vantagem.

 

Diante desse inquietante quadro, inegável se afigura o mérito dos organizadores deste evento. À Biblioteca da prestigiada Escola de Engenharia de São Carlos, portanto, os meus sinceros cumprimentos. Louvável e inestimável a contribuição deste colóquio para desvendar as causas e buscar meios ou ferramentas inibidoras das práticas usurpadoras, afastar as farsas, o vazamento e furto de dados de pesquisas em curso, o conluio para a captação indevida de resultados, enfim todo um arsenal de engenhosas artimanhas voltadas para à conquista de títulos e do sucesso acadêmico ou de mercado, sob o impulso de mero sentimento de ganância, tendo por única bandeira o “levar vantagem”.  Ética  e Moral. Expressões simétricas?

No mundo atual difícil a tarefa de discorrer sobre a ética. Melhor seria recorrermos aos estudos desenvolvidos por dois ilustres talentosos professores da nossa Faculdade de Direito,da USP, Prof. Titular, Dr. Newton de Lucca[2] e Prof. Associado, Dr. Eduardo Carlos Bittar[3] que, em pura atividade de anatomia, dissecaram a noção de ética, abordando sua evolução no percurso histórico.

 

Nessa esteira, contudo, emerge o primeiro impasse, o conceitual: a eterna confusão que reina entre ética e moral, vocábulos de origem distinta que, de certa forma, acabam por confundir as mentes, conduzindo a interpretações equivocadas. Ética, em verdade, encontra sua certidão de nascimento na língua grega, significando costume, fato que corrobora a aproximação com a moral que, oriunda do latim, detêm o mesmo sentido de costume.

 

A compreensão da expressão ética distancia-se, contudo, da ideia de moral, na medida em que abarca um modo de ser metaindividual e, sob este prisma, fundamenta a moral ou a consciência moral de determinada sociedade. Esta resulta de uma série de princípios construídos ao longo do tempo por uma determinada comunidade social e por todos aceitos. A ética, no entanto, corresponde à ciência da moral e, portanto, deve contar com o rigor, a coerência e a fundamentação das propostas científicas[4].

 

Não bastassem as dificuldades em se identificar precisamente o conteúdo e a abrangência da expressão, é de se registrar a diversificada linha de evolução da ideia de ética, impondo ao analista o acompanhamento deste percurso paraverificar o alcance e a exata acepção do vocábulo sob as lentes aristotélicas, socráticas, platônicas, enfim da filosofia antiga, dos modernos e pós-modernos.

 

Fato é que a noção de ética penetra no espaço da era pós-moderna sob um visual de comportamento humano impregnado pela ideologia liberal à qual vêm alinhados elementos extraídos da doutrina cristã e da socialista, armando o indivíduo no ensejo de preservar a sua liberdade diante do Poder e, mais que isso, impondo ao Estado (ao Poder) a obrigação de assegurar a este ser humano, integrante da comunidade social, condições de efetiva e concretamente exercer a cidadania.

 

Sensível a esta realidade, Newton de Lucca transcreve o entendimento de Norberto Bobbio que acopla ao conteúdo da ideia de ética o sentido de virtude do homem comum, arrolando como ingredientes dessa receita: “o rigor crítico, a dúvida metódica, a moderação, o não prevaricar, a tolerância, o repeito pelas ideias alheias, virtudes mundanas e civil.[5] Ética e a sociedade contemporânea.A Ética progressista de tendência destrutiva.

Por evidente que o dilema ético não encontraria terreno fértil na ilha solitária de Robinson Crusoé. O problema, contudo, se torna agudo a partir da realidade que aponta o homem sempre no convívio social[6]; e é no quadro social que emerge, com todo o seu potencial dramático, o cenário a alojar questões a exemplo da liberdade humana, dos direitos do cidadão, do indivíduo/do indivíduo-cidadão, do comportamento da cidadania na plataforma da sociedade de massa, um mundo atingido pelo processo de globalização que conduz a um recrudescimento de atitudes. É que a aldeia global a que se referem JEREMY BRECHER e TIM COSTELLO[7], descortina grupos e forças sociais em contínua competição, impondo aos homens nova e árdua tarefa: edificar um sistema de tutela preordenado à concreta defesa de seus direitos perante novos polos de poder. O poder emergente no mundo globalizado.

 

Na realidade, Lidia Reis de Almeida Prado, retomando o pensamento de Jung em artigo sobreDireito, Mitologia e Poesia, recorda que À medida que aumenta o conhecimento científico diminui o grau de humanização do nosso mundo[8]. De fato, o rompimento do ideal utópico da ciência, o relativismo moral, o materialismo comunista, o consumismo, o alto nível competitivo que atinge a sociedade do século XX caminhando e adentrando no XXI, constituem fatores de profunda agressão em relação à moral e à ética, impulsionando a formatação de uma nova visão ética por parte do homem. A ética progressista idealizada e construída sobre o princípio da sobrevivência que autoriza o indivíduo a se utilizar dos meios de comunicação e da falsa filantropia para demonstrar à coletividade o seu alinhamento às regras editadas pelo Poder.  Esta inovadora formulação da ética vem tratada com perspicácia por Pedro Francisco Gago Guerrero[9], que passa a indagar acerca dos efeitos desta visualização diferenciada da ética, concebida como fundamento para o humanitarianismo, notadamente quanto aos resultados da sua aplicação sobre as relações dos indivíduos na sociedade global. Uma ética que transcende e se afasta de qualquer ideia tradicional da moral. Sob o seu impacto, a ação do homem passa a se conduzir por um espírito de competição tendo por meta ser o vencedor, conquistar um pedestal de glória. “To be the winner” é alçada a lema do indivíduo do século XXI guiado por esta ética destrutiva. Do plágio.

Nessa atual amálgama social é que penetra, produzindo efeitos perversos ao avanço da ciência e da tecnologia a figura do plágio. O plágio, ou a apresentação com a sua assinatura de obra artística ou científica de autoria de outrem[10] não se revela fenômeno peculiar ao mundo contemporâneo. Ao invés, a captação de ideias e temáticas de outros constitui prática antiga. Até Montesquieu – célebre autor doEspírito das Leis e idealizador da teoria da separação de poderes – é por muitos acusado de plágio por ter se apoderado da tese defendida por John Locke que, muito antes, recomendara o acolhimento da tese da divisão de funções no âmbito do Estado.

 

Contudo hoje, na aldeia global carente de fronteiras e com a informação à disposição de todos, o plágio no meio acadêmico se alastra como uma praga. Ingressar nas páginas do Google para pesquisar o verbete plágio descortina um verdadeiro festival. Plágios para todos os gostos envolvendo indiscriminadamente personalidades do mundo político e acadêmico, universidades de todas as partes, pesquisas que tem por objeto identificar e quantificar o número de ocorrências, o processo de apuração e os resultados[11], programas detectores de plágio em trabalhos científicos. No avantajado arsenal de hipóteses de plágio detecta-se até uma renúncia à Presidencia da República da Hungria. Trata-se de Pál Schmitt, eleito em 2010, obrigado a abdicar do mais alto posto eleitoral e político do país por ter sido detectado plágio na sua tese de doutorado, apresentada e defendida em 1992[12].

Enfim, poderíamos declarar aberta a temporada de caça ao plágio.Como obstruir?  Como combater?

A ampliação e a intensidade desta conduta tem sensibilizado Instituições de Ensino, a própria CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que lida com os Programas de Pós-Graduação e que solicitou orientação à OAB/ Seção Ceará. Esta desde logo advertiu para a ilegalidade da prática.

 

Decerto que a propriedade imaterial, a obra ou produto do autor goza de proteção legal, erigida a crime sua violação. É o que prescreve o artigo 184 do Código Penal que sanciona o comportamento, de acordo com a gravidade, com a pena de detenção, reclusão e/ou multa. E não é só, preocupa-se o legislador, também, com o vazamento indevido de informações decorrentes de pesquisas científicas, sancionando a lesão ao segredo profissional por força do seu art. 154, cominando à irregular conduta sanção privativa da liberdade (detenção) ou multa. E ainda mais, o artigo 352 do diploma penal sanciona a violação do sigilo funcional, fulminando com a pena de detenção os servidores que revelarem informações de que tem ciência em razão do cargo.

 

O Direito, pois, comparece como instrumento apto a resguardar o clima ético na produção das pesquisas científicas. A Lei, tão criticada por não se pautar apenas por princípios morais, revela-se neste escaninho uma poderosa ferramenta não só em razão da intimidação que lhe é própria, mas também em face do efeito da sanção instituída e aplicável a este crime; crime que mutila a dignidade humana. Injuriante e profundamente pernicioso para o inter-relacionamento social e o desenvolvimento demanda contínua vigilância e pronta penalização.

 

Não há que ignorar a inquietação que essa espécie de atuação marginal gera no seio das próprias Universidades. A USP, por exemplo, reedita continuamente o seu Código de Ética que insere, já no elenco de seus Princípios, o dever de preservar o patrimônio material e imaterial da Universidade e garantir o reconhecimento da autoria de qualquer produto intelectual gerado no âmbito de suas Unidades e órgãos(art. 6º, VIII). E, mais adiante, expressamente veda ao corpo discente lançar mão de meios e artifícios que possam fraudar a avaliação do desempenho (  ) em atividades acadêmicas, culturais, artísticas, desportivas e sociais (art. 23, II). Poder-se-ía argumentar que os preceitos insculpidos no documento são carentes de sanção e, portanto, de dúbia aplicabilidade. Incorreto. A sua inobservância ou lesão importa na instauração de processo disciplinar com a possibilidade de cominação da pena de expulsão. Isto porque o próprio Estatuto da instituição inaugura o capítulo pertinente ao regime disciplinar, registrando: cabe aos corpos docente e discente, bem como à administração de toda a Universidade manter a fiel observância dos preceitos exigidos para sua boa ordem e dignidade (art. 115).

 

Forçoso convir que, na plataforma da moral, ausente está o elemento coercibilidade e, em sede acadêmica, o poder de suscetibilidade coercitiva diante das sanções administrativas possíveis, em caso de lesão, afigura-se tímida porquanto não dotada a decisão da natureza de definitiva, permanecendo sempre sujeita à revisão e reapreciação judicial.

 

O Direito, pois, a ordem jurídica posta, com o seu poder de coação e sua finalidade de, tutelando faculdades e franquias próprias do indivíduo na convivência social, tornar viável a vida no seio da comunidade, sancionando as condutas que invadem e violam os direitos protegidos, apresenta-se como o instrumento mais hábil e adequado a obstar a florescente, lucrativa e injuriosa indústria do plágio acadêmico.

 

Na Grécia antiga não havia o pensar e o agir sem mito, recorda Lidia Reis de Almeida Prado. Às figuras míticas do Olimpo competia conter tudo quanto não pudesse ser hospedado na alma do homem, inclusive desejos e fraquezas inconfessáveis[13]. Palas Atená – filha nascida da cabeça de Zeus – relata a autora, representava uma justiça preocupada com a exatidão racional e os princípios gerais. E Zeus, a mais poderosa das figuras mitológicas, aparece como um verdadeiro árbitro; aliás o primeiro Juiz do mundo, aplicador de uma justiça inclemente[14]. O povo temia a vingança dos deuses.

 

A nossa sociedade, afirmava MADISON no século XVIII, é constituída de homens e não de anjos. E esta concepção lúgubre persiste até os dias atuais, incorporando-se ao panorama que o terceiro milênio descortina. Fortalecida, aliás, emerge a inquietação sobre a melhor forma de assegurar, no contexto social, condutas qualificadas pela ideia da virtude do homem comum, a que se referia Bobbio, portadoras dos caracteres da moderação, da não prevaricação, da tolerância, do repeito pelas ideias alheias.

 

Lancemos mão, pois, dos ensinamentos mitológicos e dar crédito ao potencial defensivo do Juiz. Ao Direito, portanto, deve ser confiada a função de tutela e proteção dos direitos que, arduamente, foram sendo conquistados pelo homem. Que o mito venha em apoio da realidade do século XXI, conscientizando os indivíduos integrantes da comunidade social da autoridade da lei.

 

De São Paulo para São Carlos, 24 de abril de 2012.
Dados bibliográficos da autora: Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora Associada de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Presidente da CPG/FDUSP. Professora Titular de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Chefe do Gabinete do Vice-Governador do Estado de São Paulo (2003-março/2006). Assessora Especial do Governador do Estado de São Paulo (2006). Procuradora Geral do Município de São Paulo (1994 – 1996). Secretária dos Negócios Jurídicos do Município de São Paulo (1995 – 1996). Procuradora Municipal do Município de São Paulo (1972/1996). Consultora jurídica em São Paulo.

[1] Ver a respeito do desenvolvimento de complexo coletivo, incorporando a teoria de Carl G. Jung, Denise Ramos em trabalho publicado sob o título “Corruption. Sympton of a cultural complex in Brasil?”, onde cuida de desvendar os sintomas e a psicopatologia na vida dos indivíduos e do grupo social brasileiro.  A ideia central gira em torno da conhecida “lei de Gerson” – levar vantagem – ou a vontade de demonstrar esperteza, que conduziriam o brasileiro a se inserir no mundo da corrupção, quer ativa quer passivamente.

[2] LUCCA, Newton de, Da Ética Geral à Ética Empresarial, tese de doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2009.

[3] BITTAR, Eduardo Carlos B., Curso de Ética Jurídica, São Paulo, 2008.

[4] Idem., p. 43.

[5] Idem, p. 185.

[6] DEL VECHIO: ”o homem pertence a sociedade desde o seu nascimento e quando adquire consciência de si já se encontra envolvido em uma rede múltipla de relações sociais”. Ver a discussão sobre o poder no âmbito da sociedade e as diferentes receitas políticas no nosso Oposição na Política, São Paulo, Angelotti, 1995.

[7] BRECHER, Jeremy and COSTELLO, Tim, Global Village or Global Pillage, 2a ed., Cambridge,Massachusetts, South End Press, 1998.[8] PRADO, Lidia Reis de Almeida,  Direito, Mitologia e Poesia: a Justiça como instrumento de vingança dos deuses, in Revista Brasileira de Filosofia, ano 60, n. 237, julho-dezembro/2011, p. 105.[9] GUERRERO, Pedro Francisco Gago,La ética Progressista. El universalismo humanitário como via mecanisista para componer la unidad del gênero humano, Madrid, Espanha, Difusión Jurídica, 2011. ISBN 978-84-15150-16-9.

[10] Definição extraída do Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira S/A, 1986.

[11] Ver Debora-Weber Wulff, Casos Abertos de Plágio na Alemanha, 11/12/2011. Neste estudo, a autora examina 23 casos de plágio na Alemanha, incorporando ao seu estudo o conhecido episódio do plágio cometido por Karl-Theodor zu Guttenberg, Universidade de Bayreuth que culminou com a rescisão do doutorado. [12] Revista Veja, edição de 11 de abril de 2012, p. 48.[13] Op. cit., p. 109.[14] Idem, p. 114.

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