BRASIL: CONVIVENDO COM AS DIFERENÇAS RELIGIOSAS


Sem uma pequena análise do passado histórico torna-se difícil compreender o Brasil e a convivência de seu povo com as diferenças religiosas.

 

A europeização do Brasil se inicia nas grandes descobertas dos navegadores portugueses. No ano de 1500, com a chegada dos europeus ao litoral do hoje estado da Bahia, no nordeste brasileiro.

 

Os portugueses traziam a bordo de suas naves padres católicos e, como próprio da época, buscavam converter infiéis ao cristianismo. Encontraram as populações autóctones que praticavam religiões de cunho panteísta.

 

Em momento sucessivo (a partir de 1532), aportaram nas costas brasileiras os primeiros africanos conduzidos pelos portugueses, que procuravam estabelecer as primeiras plantações de cana de açúcar no litoral do Estado de São Paulo, no sul do território.

 

Os africanos, assim como os habitantes autóctones, também eram adeptos de religiões panteístas, cujos cultos, em variadas proporções, permanecem até a contemporaneidade.

 

Ainda, nos primeiros tempos da colônia, judeus chegaram ao Brasil, expulsos de Portugal e da Espanha em virtude de atos dos Reis católicos, que alcançaram inclusive os muçulmanos  habitantes da Península Ibérica.

 

No Rio de Janeiro, em 1555, calvinistas fundam uma colônia, a França Antártica. Perdurou até 1560. Muitos desses reformados espalharam-se pelo Brasil, uma vez destruída pelos portugueses a colônia.

 

Constata-se, pois, que desde os primórdios do Brasil, vários credos religiosos estabeleceram-se em seu território, permanecendo, durante grande período, contudo, como religião oficial, o catolicismo.

 

Acontece que, em virtude do instituto do padroado, os reis de Portugal tinham ascendência hierárquica sobre o clero, o que gerou uma série de costumes religiosos concebidos pelos leigos.

 

Em razão da escassez de sacerdotes, muitos leigos exerciam funções religiosas. Eram os sacristãos, beatos, dirigentes de ordens terceiras (entidades não subordinadas à hierarquia romana), irmandades pias (associações de crentes) e outras mais.

 

Essa situação plural e afastada de cânones do papismo gerou uma religiosidade difusa e sem o rigorismo das regras romanas.  Lembre-se que os portugueses foram lançados em imenso espaço territorial e, muitas vezes, adotaram os costumes e religião dos indígenas.

 

Tribunais do Santo Ofício da Inquisição nunca se instalaram no Brasil, apenas ocorreram diligências de visitadores, particularmente no norte, região mais rica na época.

 

Quando da independência do Brasil (1822), esse quadro sócio-religioso espelhou-se nos trabalhos de elaboração da primeira Constituição (1824). Nos debates desenvolvidos pelos constituintes, a liberdade religiosa foi defendida, permanecendo, a final, como religião oficial a católica, sem exclusão de outros cultos cristãos.

 

No decorrer do regime monárquico (1822-1889), ingressaram, em muitas regiões, luteranos e presbiterianos.

 

Os cultos africanos sofreram restrições. Os negros utilizaram-se do sincretismo, processo singular de união dos cultos de origem africana a rituais e figuras do catolicismo, e, assim, preservaram os valores de seus antepassados.

 

Com a queda do Império (1889), implantou-se o regime republicano e esse adotou o estado laico, abandonando, sem ressalvas, a religião oficial anterior: o catolicismo.

 

Nos últimos anos do Século XIX, iniciou-se o ciclo das grandes imigrações.

 

Os italianos, espanhóis, portugueses, poloneses eram católicos romanos. Chegaram, porém, ao Brasil grandes contingentes de pessoas originárias da Europa central, assim como sírios e libaneses.

 

Esses dividiam-se em cristãos ortodoxos, melquitas, maronitas e, em menor número, muçulmanos.

 

Ergueram seus templos e exercitam seus cultos e rituais. Os islâmicos construíram inúmeras mesquitas, a primeira delas na cidade de São Paulo e outras nas cidades de Barretos e Colina, na época localizadas em regiões de desbravamento.

 

Nos anos trinta e quarenta do Século XX, judeus originários da Europa imigraram para o Brasil, estabelecendo-se especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Hoje, em São Paulo, são numerosas as sinagogas existentes e cursos de formação de rabinos.

 

Há cem anos, japoneses vieram para o Brasil e trouxeram o xintoísmo e budismo, ambos foram recepcionados por ocidentais e, hoje, existe uma difusão das respectivas filosofias. Templos foram erguidos por todo o Brasil e especialmente no núcleo urbano do grande São Paulo.

 

Uma sociedade multicultural, como a brasileira, desconhece em sua História surtos de violência entre comunidades religiosas. Ao contrário, há harmonia e relacionamento extremamente correto e respeitoso entre as lideranças das diversas confissões.

 

Apesar de tantas vertentes religiosas existentes na sociedade brasileira, o observador constatará uma acentuada presença de um forte cristocentrismo.

 

Recorda-se, neste passo, para efeito de reflexão, alguns fatores específicos:

 

  • espontâneo misticismo do povo
  • ausência de tribunais da Santa Inquisição
  • pluralismo étnico
  • presença de religiões de matiz panteísta dos negros e índios
  • o padroado, instituto que concedia liberdade a hierarquia católica.
  • os leigos incumbidos de atos religiosos (sacristães e beatas)
  • as procissões, danças, festas populares como demonstração de religiosidade autêntica.

 

Nos últimos quarenta anos, com a intensa migração ocorrida para as grandes cidades, particularmente as confissões evangélicas exerceram papel preponderante na formação de vínculos entre as pessoas e estruturação de novas comunidades organizadas.

 

A presença de inúmeras confissões religiosas nas cidades permite recolher um expressivo mosaico confessional no cenário social brasileiro. Formam-se continuamente novas congregações.

 

Entre as tradicionais, mostram-se expressivas a Assembléia de Deus, a Congregação Cristã, as Igrejas Presbiterianas do Brasil, Independente e Unida, a Igreja Batista, a Igreja Adventista e a Igreja Metodista.

 

A Igreja Universal do Reino de Deus encontra-se presente por toda a parte e estende seus trabalhos para vários países da África, América e Europa.

 

A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias conta com múltiplas estacas e templos de expressiva magnitude nas cidades de São Paulo e Campinas. Seus adeptos são numerosos.

 

Testemunhas de Jeová contam com apreciável número de adeptos. Nos trabalhos parlamentares que deram origem a atual Constituição (1988), criou-se a figura de serviço militar alternativo para contemplar os crentes das religiões que se regem por rígidos princípios pacífistas.

 

O espiritismo, em sua matriz kardecista – de  Allan Kardec, pensador francês –  encontra-se muito difundido entre os brasileiros. Há uma longa tradição em sua prática. O primeiro registro oficial de uma sessão espirita é de 1865 e essa se realizou na cidade de Salvador, na Bahia.

 

A partir da presença do espiritismo, a umbanda – religião de origem africana – tomou o espaço público.

 

Deve-se acreditar que a harmonia entre os múltiplos credos permanecerá no Brasil. Há um valor presente na sociedade brasileira.

 

 

Trata-se de uma acentuada carga de misticismo plasmada pelas múltiplas visões religiosas. Esse misticismo espontâneo abre espaço para receber todas as religiões e respeitá-las.

 

Apesar das contingências religiosas do mundo contemporâneo, particularmente os embates advindos dos conflitos políticos originários da presença dos fundamentalismos, o povo brasileiro, em virtude de sua índole, certamente, continuará a  preservar a sua tradicional postura de paz entre as múltiplas formas religiosas.

 

O direito dos diversos é um valor plasmado ao longo da História brasileira. Não é uma criação jurídica artificial. É construção elaborada pela consciência coletiva.

 

Há implícita, na sociedade brasileira, a presença de algo que se diferencia da tradicional concepção de tolerância religiosa, ou seja, de suportar o outro.

 

 

Pode-se afirmar, pois, que, no Brasil, abraça-se  a idéia do direito dos diversos como expressão natural do pensamento coletivo.

 

Isto é, cada pessoa ou comunidade detém a faculdade de professar sua fé e exercer os respectivos rituais. Não se trata de mera tolerância. Existe, sim, a sadia concepção coletiva do direito dos diversos.

 

 

 

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Claudio Lembo

Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

 

Texto elaborado para 14ª Conferência Anual Internacional sobre Lei e Religião – Brigham Young University, Provo, Utah

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