MERAS COINCIDÊNCIAS


 

Aparência nova, velhos procedimentos.

 

 

 

A História é contínua.

Os seus ciclos não se esgotam.

Podem esmaecer por algum tempo.

Permanecem, porém.

Geram valores, princípios culturais inerentes a cada povo.

Estes são permanentes.

É fácil a constatação desta afirmação.

Em agosto de 2013, introduziram, na legislação penal,  novos meios de obtenção de provas.

Novos institutos.

Tudo parecia novidade.

A lei estrangeira, como fonte, exaltada.

Aplaudiam.

Ledo engano.

Os novos institutos são mera repristinação.

Lançam raízes em legislação abolida em 1821.

Quando os heréticos, aqueles que não aceitavam os dogmas da religião oficial, eram duramente apenados.

Exatamente.

Os novos institutos recordam as práticas inquisitórias.

A prisão preventiva transformada em tortura psicológica.

A colaboração premiada, um arremedo das confissões obtidas mediante terror.

As indenizações aos óbolos ofertados como contraprestação à falta cometida.

A instrução penal da atualidade encontra raízes na obra de Nicolàs Eymeric.

Os inquisidores, hoje, não usam sotainas.

Vestem-se civilmente.

Algumas vezes utilizam a toga ou a beca.

Os indiciados sempre sem gravata.

Calça jeans e camisa esporte, o usual.

Os inquisidores do passado já sabiam:

O herege sempre utiliza, como artimanha, a modéstia, inclusive nas roupas.

O velho processo corria em locais lúgubres.

O Santo Ofício se estabelecia em edifícios solenes e sombrios.

A instrução corria entre muros.

Grande pompa, se a pena fosse a máxima, a morte na fogueira.

Aí, sim, grande publicidade.

Absolvido o acusado,  buscava-se o esquecimento.

Ninguém, nem sequer o rei, podia conhecer o que a Inquisição não divulgava.

Na atualidade, evoluiu-se.

Todo o processo é público.

Antes de qualquer condenação, a plena exposição.

Agora, meros indiciados e sua família expostos ad nauseam pela mídia, sem qualquer respeito à dignidade humana.

Pouco importa a eventual futura absolvição.

O importante é a prática diária dos autos de fé eletrônicos.

O sambenito, clássico hábito dos condenados a pena capital, já não é exigido.

A multidão, ainda assim, aplaude.

O herege, no passado, era afastado dos atos da vida civil.

Emigrava.

Os expulsos de Portugal criaram a riqueza da Holanda.

Os expulsos do Brasil tomaram o barco São Jorge.

Rumaram para o hemisfério norte.

Transformaram Nova Amsterdam em Nova Iorque.

A Inquisição religiosa não exterminou as heresias.

Ao contrário, estas aumentaram geometricamente.

Houve mais, ainda.

A Inquisição conduziu à decadência econômica e intelectual dos povos ibéricos.

A espetacular caça aos corruptos – prática elogiável – não poderá ser incentivo para a busca de meios mais sofisticados para atingir  maus objetivos?

As práticas malsãs dos corruptos não podem permanecer, apesar dos esforços  para vencê-las?

Os atuais mecanismos de combate não poderão levar a resultados contrários aos previstos?

São indagações pertinentes e impertinentes.

Aqui e ali, os artigos 1º e 5º da Constituição de l988 merecem revogação tácita.

A chamada Constituição Cidadã transformou-se em eletrizante “game” de interpretação.

Mutação constitucional, interpretação conforme, efetividade,  interpretação teleológica são alguns movimentos deste eletrizante jogo.

Tudo parece permitido.

Dar, inclusive, como boas as práticas anteriores a 1821.

Os aplausos são gerais.

O Santo Ofício continua a participar da vida contemporânea.

Mais sofisticado.

Na República, como no Reino, no entanto, a miséria tornou-se avassaladora.

Só resta a volta do sebastianismo.

Sintoma de depressão e decadência.

Todos se sentem oprimidos e fragilizados.

Lastimam a pouca sorte.

O Santo Ofício voltou.

 

 

 

 

 

Referências

 

Lei n. 12.850, de 2 de agosto de 2013

Eymerich, Nicolau – Manual dos Inquisidores – Rosa dos Tempos – Edunb – Rio de Janeiro – Brasilia – 1993

Eymeric, Nicolás – El Manual de los Inquisidores – Rodolfo Alonso Editor – Buenos Aires – 1972

Grigulevich, I. – História de la Inquisicion – Editorial Progresso – Moscou – 1980

Serrão, Joel – Dicionário de História de Portugal – Verbete: Santo Ofício – Livraria Figueirinhas – Porto – s/data

Saraiva, José Antonio – Inquisição e Cristãos Novos – Imprensa Universitária/ Editorial Estampa – Lisboa – 1985

Barroso, Luís Roberto – Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – Saraiva- São Paulo – 2011

Baigent, Michel e o. – A Inquisição – Imago – Rio de Janeiro – 2001

Sérgio, António – Breve Interpretação da História de Portugal – Clássicos Sá Costa – Lisboa – 1983

Henningsen, Gustav – Lá avvocato delle streghe – Garzanti – Milão – 1990

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