IMPEACHMENT. CONFIGURAÇÃO E OBJETIVOS. QUEM DECIDE? COMO? QUANDO?


Monica Herman

Monica Herman Caggiano

Considerações Preliminares 

 

O atual clima político que a mídia e as redes de comunicação e compartilhamento vem estampando é indicativo, na realidade, de uma acentuada confusão acerca de uma figura técnico-jurídica,  antiga – a exemplo de vários outros institutos, originária do arsenal britânico, um modelo westminster – que tem por missão servir de mecanismo para afastar do Poder o governante que praticar ilegalidade.  Trata-se do Impeachment [1], um instrumento que, a rigor, se insere no elenco de ferramentas de que dispõe o Parlamento para exercer uma de suas mais relevantes funções, a do controle político sobre a ação governamental.

 

De fato, o impeachment emerge como fórmula direcionada a impedir a permanência no polo governamental da autoridade que tenha praticado ato ilícito e não mais seja merecedora da confiança da cidadania. Vem norteada pela ideia de responsabilização. Os que conquistam o Poder político por via eleitoral, respondem jurídico e politicamente por suas condutas e ações.  A aquisição do Poder pelo voto, conduz de imediato o candidato vencedor a assumir a responsabilidade pelo desenvolvimento das atividades próprias da função.

 

Cuida-se, destarte, de fórmula que tem por objetivo expropriar, do candidato vencedor de um processo eleitoral, o mandato conquistado nas urnas por intermédio da manifestação política do cidadão. Mais que isso, detecta-se claramente uma ameaça de lesão a um direito público subjetivo, o direito de sufrágio, bidimensional, que abarca, de uma parte o direito de integrar o corpo eleitoral e, de outra, o direito de postular cargos públicos e o de exercê-los, praticando as políticas públicas anunciadas ao longo da campanha e que foram prestigiadas pelo eleitor que as contemplou com a sua preferência.

 

Pois bem, não há como ignorar que o panorama do direito de sufrágio descortina um ambiente especialíssimo, porquanto esse conforma o mais precioso dos direitos do homem político, integrante de uma comunidade social, exatamente por lhe propiciar a participação no polo do Poder, quer ativa quer passivamente. Nas democracias, que se desenvolveram e floresceram sob o respaldo do constitucionalismo [2], de modo peculiar, o sufrágio é erigido a direito constitucionalmente tutelado, prerrogativa reconhecida como liberdade pública fundamental, que somente pode sofrer restrições excepcionalmente e estas, quando fixadas na Constituição, desautorizam qualquer alargamento ou interpretação expansiva.

 

Nesse sentido, oportuno registrar, ainda, o standard da segurança jurídica [3], princípio estruturante da democracia, que repousa sobre a célebre fórmula do Estado de Direito, receita de limitação do poder político a impor o respeito à Constituição e à lei. A estrita legalidade a resguardar o direito de sufrágio na sua plenitude e a fixar limites a eventuais tentativas de restringir o seu exercício.

 

Considerando essas ponderações iniciais, como primeiro registro cumpre apontar o enclausurado campo de funcionamento do impeachment por lidar com o delicado, constitucional e amplamente protegido direito de sufrágio. O seu acionamento e evolução admitem tão só medidas preconizadas na Constituição e na lei que dispõe sobre o curso do processo [4], inviabilizando interpretações  de maior plasticidade; ao invés, o hermeneuta deverá restringir-se à letra da lei, porquanto esta esfera vem comandada pela máxima da estrita legalidade.

 

Do Impeachment no ordenamento jurídico brasileiro. 

 

Em ambiente doméstico, o impeachment ancorou por inspiração explícita no modelo norte-americano, marcando presença no constitucionalismo pátrio desde a primeira das Constituições republicanas, a de 1891. Instrumento especialíssimo e de elevado potencial lesivo a direito fundamental, apresenta reduzida utilização na sua trajetória histórica tanto no panorama estadunidense como também no Brasil. No entanto, a raridade quanto à sua aplicação não o coloca na vala da obsolescência nem lhe atribui certificado de óbito. Continua valoroso e perigoso, porquanto apesar de pretender encampar por finalidade a restauração da ordem constitucional e a harmonia entre os Poderes, em verdade, o impeachment já na sua instauração intensifica o estado de intranquilidade política.

 

Acentuada, outrossim, a polêmica suscitada girando em torno da natureza jurídica do instituto. Processo de caráter penal, político ou administrativo? Não há consenso sobre a questão.

 

É de se anotar, no entanto, que o procedimento importa em acusação; acusação quanto à prática de ato definido por lei como passível de impeachment e que tenha sido executado no exercício das funções inerentes ao cargo ocupado e para o qual foi conduzido pelo resultado eleitoral. Demais disso, o processo no seu curso deve absoluta obediência e respeito à cláusula do devido processo legal, ai compreendidos todos os seus consectários, a exemplo do juiz natural, contraditório e ampla defesa.

 

De outra parte,interessante se oferece o cenário que o envolve: o Poder Legislativo, destacando o perfil politico do mecanismo. No ordenamento norte-americano, acompanhando a tradição do British model,  a denúncia (acusação) compete à Câmara dos Representantes que a formaliza de modo articulado, por via de artigos de impeachment, sendo atribuída ao Senado, sob a presidência do Chief Justice da Suprema Corte, a função do julgamento, artigo por artigo.

 

A Constituição brasileira oferece tratamento similar. Disciplina a matéria sob rótulo diferenciado ao tratar de Crimes de Responsabilidade do Presidente da República nos seus artigos 85 e 86 (Seção III, Cap. II, Título IV). Comete à Câmara dos Deputados a competência para “admitir a acusação contra o Presidente da República”  e a instauração e o julgamento atribui como missão ao Senado Federal (art. 86).

 

Mais que isto, fixa a Lei Fundamental o quórum de deliberação exigido para a deliberação quanto à admissibilidade de acusação contra o Presidente da República, pela prática de crime de responsabilidade, impondo o voto qualificado de 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara dos Deputados e arrola, tipificando, os atos que podem desencadear oimpeachment, identificando sete hipóteses:

Constituição Federal:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I – a existência da União;

II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV – a segurança interna do Pais;

V – a probidade administrativa;

VI – a lei orçamentária;

VII – o cumprimento das leis e decisões judiciais.

Mais até, a própria Constituição delimita o período em que o ato, tido como incidente nas hipóteses tipificadas como crime de responsabilidade, deve ter sido praticado para ensejar a acusação, preconizando no § 4o. do já referido art.86:

 

Art. 86. ………………………………………

  • 4o. O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

 

Cumpre assinalar, a esse passo, portanto, o fato de que o acionamento do impeachment deve atender a condições de forma e de fundo, expressamente estatuídas pela Constituição federal. No elenco das condições de forma, inscreve-se a competência exclusiva da Câmara dos Deputados, por dois terços de seus membros, para admitir a acusação ou, em outras palavras, o prosseguimento do impeachment; e na categoria das condições de fundo impõe-se que:(1) o ato praticado venha a se subsumir perfeitamente a um dos tipos constitucionais indigitados no art. 85 e explicitados no texto da Lei federal n. 1079, de 10 de abril de 1950; e (2) o ato inquinado de eventual ilicitude tenha sido praticado no exercício do mandato político-eleitoral que se pretende extirpar.

 

Ora, os apontamentos acima nos guiam diretamente a dois específicos registros: (1) a uma, a realidade constitucional que autoriza o prosseguimento do impeachment apenas por força da deliberação da maioria qualificada da Câmara dos Deputados, por dois terços de seus membros, configurando a sua instauração competência exclusiva do Senado Federal; (2) a duas, o ato atacado – este deve se inserir na lista de funções inerentes ao mandato de Presidente da República e ser praticado no período de exercício do aludido mandato.

 

Não nos parecem, destarte, jurídicas e factíveis as razões a embasar o impeachment da Presidente da República alardeadas ao longo dos últimos meses. A margem das condições fixadas pela Constituição para a sua deflagração, destituídas de conteúdo jurídico preconizado no Estatuto Fundamental para fundamentar este processo – porquanto “pedaladas” contábeis, expressão que não existe sequer na Lei 4.320, o estatuto da contabilidade  pública – os fatos noticiados, na verdade, não incidem em qualquer um dos tipos elencados no art. 85 da nossa Constituição. Ao invés, ofendem, se afiguram lesivos e investem contra um direito público subjetivo, o direito de sufrágio, que na sua formulação passiva é garantidor do exercício do mandato político conquistado nas urnas.

[1]Ver o nosso Direito Parlamentar e Direito Eleitoral, ed. Manole, São Paulo, 2004.

[2]Conforme descrito em CAGGIANO, Monica Herman, Democracia X Constitucionalismo.Um navio à deriva?(capítulo em obra coletiva), in Revista Brasileira de Filosofia, ano 60, Volume 237, julho/dezembro de 2011.
[3]CAGGIANO, Monica Herman, Legislação Eleitoral e Hermenêutica Política X Segurança Jurídica, Barueri, SP, CEPES, Manole, 2006

[4]Lei federal n. 1079, de 10 de abril de 1950, recepcionada pela Constituição de 5 de outubro de 1988.

print